A eremita do Gandarela

 

A Serra do Cipó conhece um eremita famoso. Juquinha, que viveu, há muito tempo, entre Santana do Riacho e Conceição do Mato Dentro. Hoje, existe gigantesca escultura em sua homenagem, que é atração turística em Minas Gerais. A Serra do Gandarela também abrigou, por certo tempo, um eremita, ou melhor dizendo, uma eremita. Trata-se de Divina, a Louca. Há entre eles uma diferença crucial. Juquinha era eremita simpático, que vendia flores na beira da estrada. Divina, não. Eremita convicta, fugia do contato com outras pessoas. E tinha motivos para isso. Eis a razão pela qual ficou pouco conhecida, tendo sido necessária uma investigação para conhecer um pouco de sua história.

Nasce no Cocho d’Água. Segundo seus familiares, cresce como um ser humano normal, muito embora, às vezes, um tanto estranha. Com vinte e poucos anos, sua vida sofre uma guinada. Encontra um crucifixo jogado no chão do quintal. Vê isso como Cristo decaído. Uma mensagem para ela! A partir daí, leva ao pé da letra seu nome e começa a acreditar que é uma deusa. E mais: todos estão errados. Deus não é um homem. É uma mulher! E ela foi incumbida de encarnar esse Deus feminino e vir ao mundo, para a verdadeira salvação da humanidade.

Com o tempo, as crenças de Divina passam a ter desdobramentos. Tal como a ideia de abandonar todas a imagens masculinas de Deus. Tanto de Deus Pai, como de Jesus Cristo e do próprio Espírito Santo. Sendo necessário, inclusive, corrigir as falsas Bíblias. Deus é Deusa, e não é Pai, é Mãe. E ainda: um dia, os Irmãos que forem salvos irão para sempre para a Casa da Mãe. Existem detalhes, mas, o esqueleto de sua doutrina é este.

Muito comum dizer que ideias tão extravagantes não passam de um delírio. Não é bem assim. Quando, além do próprio autor, outras pessoas acreditam nas ideias extravagantes, então surge um líder religioso, ou um líder político, ou um líder de nova corrente filosófica. A história dos homens está recheada de exemplos.

No entanto, o que acontece com Divina não é isso. Após expor suas ideias, familiares, vizinhos e pessoas do povoado exclamam.

—A Divina está louca! A Divina enlouqueceu!

Em outras palavras, não encontra adeptos para as suas ideias. A não ser, é claro, ela própria, cuja convicção não sofre o mínimo abalo. Continua uma Deusa encarnada, e o que é mais: com honrosa Missão a ser cumprida. Como fazê-lo?

Depois de muito pregar para os que estão perto —inutilmente, diga-se de passagem— resolve ampliar o âmbito de sua pregação. No domingo, vai à Igreja Matriz de Santo Antônio, no centro de Rio Acima, no momento em que padre Osvaldo celebra sua concorrida Missa. Na hora do Evangelho, padre Osvaldo prega com eloquência.

—É preciso considerar que a vida é uma passagem… uma ínfima passagem! E o que mais importa é estarmos, na vida eterna, acolhidos por Deus, acolhidos na Morada  do Pai!

Divina então se levanta, em seu banco na igreja, pede um aparte e começa a expor suas ideias, claramente contrárias às do padre.

Mais uma vez, não conquista adeptos, mas, uma viatura da Polícia Civil recolhe-a para ser levada a Belo Horizonte, onde é internada no Hospital Galba Veloso, que recebe pacientes psiquiátricas do sexo feminino.

Volta de lá três meses depois. Aparentemente mais calma, impregnada de remédios, e com as mesmas crenças. Como alcançar a Missão?

Desiludida com os próximos e desiludida com os católicos, vem-lhe uma luz. Por que não os crentes? Os evangélicos têm várias seitas, e ela poderia, quando nada, começar com mais uma delas. A maneira de começar, entretanto, não foi feliz.

No domingo, segue para o culto na Assembleia de Deus. Durante a pregação, o pastor foi enfático.

—Jesus, o filho de Deus, fez-se homem para nos salvar!

Divina não se contém. E o resultado não é surpresa. Sua segunda internação no Galba Veloso é também sua última tentativa de pregação. Tenta convencer seu psiquiatra. Conta-lhe sua revelação e faz a pergunta.

—Você acredita em mim?

—Respondo-lhe com outra pergunta: o Demônio também é uma mulher?

Divina sai do hospital sem saber o que aquele homem quer com aquela pergunta. No Cocho d’Água, uma resolução. Sua família está cansada dela. Ela, cansada de sua família. É hora de cumprir, sozinha, sua Missão.

Sai andando a esmo, mundo afora, pequeno mundo de Rio Acima. Chega às encostas da Serra do Gandarela, onde, perambulando sem parar, encontra, já no primeiro dia, uma gruta. Começa sua vida de eremita.

Sim, Divina desiste completamente de convencer quem quer que seja. Sua Missão será cumprida por ela, apenas por ela.

A Serra, na sua imensidão, é um labirinto que lembra o deserto onde se deram as sagradas tentações. Água existe, alimentos são poucos. Mangas, bananas, goiabas, pequis. Prefere os ovos. Recolhe-os dos ninhos de pássaros, lava-os e come-os, crus, com casca e tudo. Às vezes, ovos de galinhas, nas poucas casas que existem, e quando os cachorros se distraem. Aproveita a ocasião, para pegar alguma roupa no varal, quando a sua está por demais surrada. É nessas ocasiões que, eventualmente, é vista e reconhecida. Divina, a Louca!

Raramente volta ao Cocho d’Água. Numa ocasião, vai à vendinha do Seu João, compra uma caixa de fósforos e põe na conta. Seu João, compreensivamente, atende. No caminho, passa por depósito de lixo e retira uma lata. Uma caixa de fósforos e uma lata: é tudo o que precisa.

Dorme numa gruta com pequena fogueira acesa à porta, para espantar os bichos. Não se sabe quantos anos vive assim. O certo é que muda, aos poucos, para as partes mais altas da Serra, de gruta em gruta. Às vezes, é avistada, mas, desprezada. O que não lhe preocupa.

Depois de certo tempo, Divina não mais é vista. Alguns —muito poucos— perguntam por ela, mas, nenhuma resposta.

Anos mais tarde, um casal de alpinistas ousa chegar ao cume do altíssimo Monte Nicolau, e lá encontram, surpresos, cena inusitada. Corpo decomposto —verdadeiro esqueleto— fixado a troncos de madeira encaixados em forma de cruz e desgastados pelo tempo. A polícia é chamada e os exames são feitos. Com recursos da época, poucos dados: mulher, 33 anos.

 

 

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