Sim, desde o início você é intensamente amada. E intensamente odiada. Amada por poucos. Odiada por muitos.
Vamos aos primórdios. A fúria vem à tona quando Freud aponta a existência da sexualidade infantil e, mais do que isso, sua importância na causação da neurose.
Escândalo: você não é ciência, pelo contrário, é obra de um devasso, que enxerga nas crianças sua própria perversão. Melhor é deixá-las em paz, entregues à natural inocência, e conduzir as investigações dentro do rigor do método científico.
Fique agora serena. Passado mais de um século, quem ainda duvida da existência da sexualidade infantil?
Mais tarde, Freud responde a seus críticos. A Psicanálise trata de singularidades, pois não existem dois casos clínicos iguais, e não é possível fazer estatística com singularidades. Seu método, porém, possui critérios próprios de validação.
Você não é ciência? Depende. Se o paradigma é a física, então você, de fato, não é. Mas, se a exigência é esta, como ficarão os tratamentos daqueles que sofrem de lancinantes problemas mentais? A psicoterapia e a psiquiatria também não podem ser consideradas ciências.
Você nasce dentro da medicina, mas, aos poucos, se afasta inteiramente dela. Já a psiquiatria atual se arvora em ramo da medicina de base científica, pois seus tratamentos têm fundamento estatístico e seguem rigorosa metodologia. Mas —que pena!— existe, não obstante, um sério problema.
A medicina científica define normal e patológico em sólidas bases biológicas (clínicas e, sobretudo, anatômicas e fisiológicas). Na psiquiatria, tal substrato simplesmente não existe. Nem a mais grave das doenças mentais, a esquizofrenia, pode ser caracterizada, no momento atual, por meios biológicos. Seu diagnóstico continua essencialmente clínico. O mesmo pode ser dito sobre a quase totalidade dos numerosos transtornos catalogados no DSM-V, última classificação psiquiátrica.
Normal e patológico, tanto para a psiquiatria como para a psicoterapia, estão apoiados na norma social. E nada menos que o Instituto de Saúde Mental dos EUA critica, de forma veemente, a referida classificação, além de propor ambicioso projeto, o RDoC, que visa à criação de nova taxonomia, ancorada em firmes bases biológicas.
A vocação normativa da psiquiatria faz lembrar o alfaiate proposto por Millôr Fernandes, naquela famosa formulação: “O comunismo é uma espécie de alfaiate que quando a roupa não fica boa faz alterações no cliente”.
Você não se propõe a reforçar a conformidade social, tal como a psiquiatria e a psicoterapia. O acento de sua ética está no sujeito, em sua singularidade, como foi dito. O melhor que cada um pode fazer, inclusive pelo outro, é não ceder de seu desejo.
Ainda que não sejam, como a física, uma ciência, você, a psicoterapia e a psiquiatria podem fazer muito, cada uma a seu modo, pelos que padecem de problema, sofrimento ou transtorno mental. E fazem. Palavras de meu mestre Paprocki: existe tratamento para todo tipo de paciente, e paciente para todo tipo de tratamento.
Por falar nisso, é com o tratamento que nasce meu amor por você. Meus primeiros flertes acontecem na juventude, por meio de livros de Eric Fromm, psicanalista da Escola de Frankfurt. Momento romântico.
Diferente de momento dramático que vivo como recém-formado em medicina, e que defini, alhures, como catástrofe de minha mocidade. Da qual sobrevivo graças a nosso encontro. Necessito, na ocasião, não apenas de resultados, mas de respostas. Não me canso de repetir: devo tudo a você.
Minha psicanálise dura dos 23 aos 71 anos. Não é um trabalho contínuo. Há intervalos; o maior deles, de quinze anos. Ao todo, quatro ciclos, com quatro psicanalistas diferentes.
É muito tempo? Talvez. Confesso, porém, que meu tratamento de dentes começa muito antes, continua até hoje e não tem data prevista para acabar. E —acredite—meus dentes são muitíssimo menos complexos do que minha cabeça.
É chegada a hora de segredos, de confidências. Sim, o tratamento é importante, pois a experiência clínica permite chegar aos conceitos fundamentais, bem como à evolução da prática e da teoria. Entretanto, sua importância é qualitativa. A psicanálise pura, hoje, está quase restrita aos candidatos a psicanalistas. E mesmo a psicanálise aplicada à terapêutica, com objetivos mais modestos, abrange número relativamente pequeno de pacientes. Sejamos francos: o tratamento psicanalítico é para poucos.
Qual é, então, a base onde se ergue sua importância? Freud é reconhecido como um dos grandes gênios da humanidade por dois caminhos de grande alcance. O primeiro é a reverberação de seus conceitos fundamentais (inconsciente, pulsão, transferência, repetição). O segundo é algo que pode ser definido como aplicação da psicanálise ao campo da cultura. A partir daí há uma descentração, segundo a qual a concepção que o ser humano faz de si mesmo nunca mais é a mesma.
Um exemplo de contribuição de grande alcance, já mencionado, é a existência da sexualidade infantil, que é des-coberta, com todas as implicações e consequências que isso traz. Há vários outros.
Desde 1905, com os “Três ensaios sobre a sexualidade”, de Freud, você critica categoricamente a consideração do homossexualismo como doença, delito, degradação ou imoralidade, e trata-o como variação do desejo sexual. Sua posição firme em relação às orientações sexuais foi decisiva. Para que se tenha uma ideia do pioneirismo do que está em jogo: o cientista Alan Touring, pai do computador e herói da Segunda Grande Guerra, suicida-se após ter sido condenado à castração química, no Reino Unido, por ser homossexual.
Outra evolução em que você tem papel destacado é a emancipação das mulheres. A época de Freud é rigidamente patriarcal. Prevalece a moral sexual civilizada, a moral vitoriana, na qual o sexo só é permitido no âmbito do casamento monogâmico e para fins de procriação. É claro que os homens não se restringem a tais limites, o que configura uma moral sexual dupla. A repressão maior recai sobre as mulheres, que, além do mais, tem papel social secundário e são depreciadas, como portadoras de “debilidade mental fisiológica”. Freud critica sistematicamente a moral sexual civilizada, e atribui a inibição intelectual das mulheres à repressão sexual. Não por acaso, na Psicanálise, desde sempre, as mulheres têm papel tão destacado como os homens.
Vários outros pontos podem ser desenvolvidos, no que tange à sua aplicação ao campo da cultura. A psicologia das massas. A origem, natureza e evolução das ideias religiosas. As causas do mal-estar na civilização. Por que a guerra. Convém lembrar, no entanto, que aqui não se trata de tese de doutorado, mas de carta de amor.
Na esteira das contribuições de Freud, muitos avançam no seu ensino. Citarei os que, para mim, são os principais. Costumo dizer que me situo no campo aberto por Sigmund Freud, radicalizado por Jacques Lacan e elucidado por Jacques-Alain Miller. Em relação ao campo da cultura, a mesma preocupação. Lacan, por exemplo, é enfático: “Que antes renuncie à prática psicanalítica quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.
Sim, você, entre outros fatores, contribui para a liberação dos costumes e para a emancipação das mulheres, a ponto de muitos psicanalistas falarem de feminização do mundo contemporâneo. Vamos com calma. Não é bem assim. Nem todo o mundo.
Para concluir, proponho olhar para o mapa mundi. Muita atenção. Quais os países em que há liberação dos costumes e emancipação das mulheres? Ao localizá-los, é possível constatar: são aqueles em que você exerceu sua influência.
Mas, afinal, quem é você, minha amada?
Você é uma mulher.
Francisco Paes Barreto
Psicanalista. A.M.E. (Analista Membro da Escola) da Associação Mundial de Psicanálise