O Normal e o Patológico
para a Medicina, para a Psiquiatria, para a Saúde Mental e para a Psicanálise[1]
À memória de Carlo Viganò
A definição do normal e do patológico com fundamentos biológicos foi o passo decisivo para o estabelecimento da Medicina de bases científicas. O tema é importante por outra razão: como prática social, a medicina trabalha para prevenir ou corrigir a patologia, visando à normalidade biológica.
A psiquiatria desde sempre se considerou uma especialidade médica e hoje, mais do que nunca, acredita ter confirmado esse lugar. Cabe, porém, a pergunta: o normal e o patológico, para a Psiquiatria, está concebido nas mesmas bases?
E a Saúde Mental, como se posiciona em relação a tema tão crucial?
O objetivo do presente artigo é trazer reflexões sobre o tema na Psiquiatria e na Saúde Mental, mas, ao fazê-lo, não há como não considerar a evolução que o binômio conheceu na Medicina, referência matriz das outras disciplinas. Na última parte do artigo, abordo, de maneira sucinta, como a Psicanálise lida com a questão.
O normal e o patológico na medicina de bases científicas
A medicina de bases científicas é algo que só ocorreu na primeira metade do século XX, precisamente a partir da conceituação do normal e do patológico com fundamentos biológicos. Foi o resultado de longo percurso, que teve início na segunda metade do século XIX, com o nascimento da Clínica. Do ponto de vista didático, pode-se dividir a evolução apontada em três aspectos.
- A estruturação da Clínica como método (a análise, apropriada do filósofo enciclopedista Condillac), experiência (que privilegia o olhar) e linguagem (que privilegia o signo), numa formalização que ficou conhecida como método clínico, e cujo principal artífice foi Pinel (1745-1826).[2]
- O enraizamento epistemológico da clínica na anatomia patológica, que se passou no nível do órgão (Morgagni, 1682-1771), do tecido (Bichat, 1771-1802) e da célula (Virchow, 1821-1902), dando origem ao método anátomo-clínico.[3]
- Finalmente, a definição de o normal e o patológico em termos fisiológicos, com a descoberta das constantes do meio interno, por Claude Bernard (1813-1878), e com a construção do conceito de homeostasia, por Cannon (1871-1945).
Para Canguilhem, autor de marcante obra sobre O Normal e o Patológico, não é absurdo considerar o estado patológico como normal, mas esse normal não é idêntico ao normal fisiológico, pois se tratam de normas diferentes: o estado mórbido é sempre uma certa maneira de viver. E a cura é a reconquista de um estado de estabilidade das normas fisiológicas; curar é criar para si novas normas de vida, às vezes superiores às antigas. A norma não pode ser reduzida a um conceito objetivamente determinável por métodos científicos.[4]
O ingresso da medicina na era científica, portanto, está ligado à construção de sólidas bases biológicas (clínicas, anatômicas e fisiológicas), que não esgotam, entretanto, a complexidade do tema. Lacan comenta que se criou uma nova concepção de corpo, numa evolução que caminha para situá-lo na expectativa de ser inteiramente fotografado, radiografado, calibrado, diagramado e condicionado.[5] Passou a ser considerado como um sistema homeostático, em sua pura presença animal, o que já foi chamado com justeza de corpo-máquina. A medicina sabe cada vez mais sobre partes cada vez menores desse corpo-máquina, cujas leis e funcionamento vêm sendo desvendados de forma minuciosa e precisa. No final do século XX, com o progresso exponencial dos recursos tecnológicos, o discurso científico promoveu uma dissecção virtual in vivo, com uma fragmentação ou um estilhaçamento que mudou o recorte do corpo.
Ao lado de todo esse avanço, Lacan observa que, não obstante, nem sempre o que o paciente demanda do médico é a cura. Às vezes, ele desafia o médico a retirá-lo de sua condição de enfermo ––o que implica estar ligado à ideia de conservá-la. Outras vezes, demanda explicitamente do médico que o autentique como enfermo. Ou ainda, demanda que lhe preserve em sua enfermidade. Além do mais, não é necessário ser psicanalista, sequer médico, para saber que, quando alguém demanda algo, isso não é idêntico, e às vezes é inclusive diametralmente oposto, àquilo que se deseja. Introduz-se, assim, a estrutura da falha que existe entre aquilo que se demanda e aquilo que verdadeiramente se deseja.[6]
A noção de falha pode ser retomada para definir o efeito do progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo. Em outras palavras: quanto mais a medicina científica avança, mais ela ganha, numa certa perspectiva, e mais ela perde, em outra perspectiva. Dizendo em poucas palavras em que consiste esta falha: quando se toma por objeto o corpo-máquina, fica de fora a dimensão do desejo e do gozo. É o que Lacan chamou de falha epistemossomática. A falha epistemossomática, portanto, é a que se verifica entre o corpo considerado como um sistema homeostático, em sua pura presença animal – corpo biológico estabelecido pela ciência médica – e o organismo desejante e gozoso.[7]
O impasse da psiquiatria clássica
O Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental (1808), de Pinel, é a obra inaugural da psiquiatria. Desde o início, portanto, a psiquiatria se diz medicina. Desde o início, porém, a sua identidade médica é problemática.
Pinel foi um dos maiores teóricos da história da medicina, o principal arquiteto das bases epistemológicas da Clínica. Até o fim da vida, no entanto, permaneceu surdo às lições essenciais da anatomia patológica, não aceitando o método anátomo-clínico, que prevaleceu na medicina de bases científicas. Motivo pelo qual seus méritos foram, em grande parte, relegados.[8] Por isso, Pinel só é lembrado, geralmente, como fundador da psiquiatria e protagonista de duplo advento: do humanismo e do saber médico no trato com a loucura. Com efeito, ao assumir a Bicêtre (1793) e a Salpêtrière (1795), ele liberou os loucos de suas amarras e aplicou o método clínico ao estudo das alienações mentais.
Em meados do século XIX, Griesinger, o pai da psiquiatria alemã, encorajado pela descoberta da paralisia geral por Bayle (correlacionando achados clínicos e anátomo-patológicos e ensaiando a psiquiatria no método anátomo-clínico), formulou, logo na primeira página de seu famoso Tratado, sua hipótese anatomista radical: “As doenças mentais são, antes de tudo, doenças cerebrais”.[9] O anatomismo de Griesinger passou a ter hegemonia absoluta durante todo o período áureo da psiquiatria clássica. As doenças mentais, desse modo, foram divididas em dois grupos: as de substrato anátomo-patológico já comprovado, e as de substrato anátomo-patológico por comprovar.
Tudo indicava que a anatomia patológica poderia desempenhar, para a clínica psiquiátrica, o mesmo papel fundamental que assumiu para a clínica médica. Mas, não foi o que aconteceu. O problema é que a categórica afirmação de Griesinger não passava de postulação, na maioria das vezes sem nenhuma possibilidade de demonstração. Anos depois (em 1863), outro grande nome da escola alemã ––Kahlbaum–– reconhecia, modestamente, que os achados da clínica psiquiátrica poderiam, talvez, orientar e dirigir a pesquisa anátomo-patológica na descoberta dos resultados esperados.[10] Na verdade, a psiquiatria clássica nunca pôde se fundar na anatomia patológica, embora sempre tivesse situado no seu horizonte essa possibilidade. Ironicamente, a psiquiatria sobreviveu à medida que esse sonho não se realizou: uma identificação plena com a clínica médica representaria a sua absorção pela neurologia.
A correlação anátomo-clínica, por conseguinte, jamais foi, para a clínica psiquiátrica, decisiva como para a clínica médica. A maioria das doenças mentais constituiu-se, basicamente, a partir do método clínico. A diferença é crucial. Bichat exortava os médicos de sua época a reconhecerem o cadáver no estatuto de fenômeno real e de texto; objeto de análise e livro aberto à leitura dos processos da vida, da doença e da morte. Quando o doente cerrava os olhos, a clínica médica partia ao encontro de sua verdade. O mesmo não se verificava com o doente mental. Quando ele cerrava os olhos, e os lábios, nenhuma psiquiatria mais era possível.
A psiquiatria das grandes escolas (fenomenológicas e dinâmicas)
Depois da psiquiatria clássica, tivemos a psiquiatria das grandes escolas, que pode ser dividida em dois grandes grupos. As escolas fenomenológico-clínicas inspiram-se no legado de Jaspers, que aproximou da psiquiatria a fenomenologia husserliana. E as escolas psicodinâmicas inspiram-se em Bleuler, que aproximou da psiquiatria a psicanálise freudiana. Como é que abordam a questão do normal e do patológico? Também aqui se baseia na norma, mas a norma de que se trata é a social ou cultural.
Esclarecerei esse ponto recorrendo a um tratado de psiquiatria muito utilizado em nosso meio.
“No conceito de norma devemos distinguir um conteúdo e uma forma-função. O conteúdo da norma, equiparável ao termo médio, tem uma base estatística e, como assinala a doutrina do relativismo cultural, não constitui um estado absoluto, nem tem um fundamento ontológico, mas está subordinado ao tempo histórico, ao lugar e às peculiaridades de uma cultura. Uma norma estável de validade geral não existe. Mas o conteúdo da norma está condicionado fenomenologicamente pela existência da norma como função. A função da norma existe em todo tempo e lugar. Transcende, pois, ao relativismo”.
Mais adiante, o autor estabelece a correlação: “Em virtude do exercício da faculdade de tipificação, todos nós coparticipamos do mesmo mundo. O mundo normal é um mundo tipificado. O mundo do doente psíquico se distingue fundamentalmente do normal não por seu conteúdo, mas por sua forma. Podemos descrever a patologia da tipificação como o mórbido”.
Para, pouco depois, concluir: “Eis aqui minha definição predileta de psiquiatria: ‘A psiquiatria é o ramo humanista por excelência da medicina que trata do estudo, da prevenção e do tratamento dos modos psíquicos de adoecer’. A ideia do modo psíquico de adoecer, segundo acabo de expor, se funda na perda involuntária da faculdade normativa.” [11]
Diferente da medicina, que alicerça o conceito de normal e de patológico em termos biológicos, a psiquiatria funda tal distinção na norma cultural ou social. Ou seja, a saúde mental como norma, a doença mental com perda involuntária da faculdade normativa e o tratamento psiquiátrico como meio utilizado para o seu restabelecimento. A restitutio ad integrum, tão cara à medicina, na psiquiatria tornou-se, assim, restituição da normalidade social.
A psiquiatria do DSM e da classificação internacional
A questão do normal e do patológico na psiquiatria pode ser abordada a partir das classificações das doenças mentais. Quanto a isso, tivemos três grandes momentos, distanciados aproximadamente um século um do outro. O primeiro momento foi a nosologia pinel-esquiroliana, construída no início do século XIX. Era uma classificação sindrômica, baseada numa fenomenologia elementar, que descrevia fachadas psíquicas. O segundo momento foi a nosologia psiquiátrica clássica, que conheceu seu apogeu com Kraepelin, no início do século XX. A reformulação da primeira nosologia começou na segunda metade do século XIX. O critério sindrômico cedeu lugar ao critério evolutivo e à história natural da doença. Pretendia-se, assim, caracterizar as “verdadeiras entidades mórbidas”, numa perspectiva fortemente organicista, pois as doenças mentais eram consideradas, antes de tudo, doenças cerebrais.
Do ponto de vista estritamente nosológico, a psiquiatria pouco mudou com o advento das grandes escolas (fenomenológicas e dinâmicas). Entretanto, o consenso só existia em relação a alguns aspectos. Cada autor ou cada tratado apresentava a sua própria classificação das doenças mentais, com diferenças frequentemente acentuadas.
O cenário começou a mudar em 1952, com a publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM) da Associação Psiquiátrica Americana. Trata-se de classificação que se pretende ateórica e não etiológica, e que se baseia na listagem e quantificação dos sintomas para definir, mediante consenso que se propõe cada vez mais amplo, os transtornos mentais e do comportamento. As várias edições do DSM alcançaram um êxito tão expressivo que definiu a orientação da própria Classificação Internacional de Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde, no final do século XX (1992).
Uma definição é crucial na CID-10: a de transtorno. O termo é empregado “para indicar a existência de um conjunto de sintomas ou comportamentos clinicamente reconhecível associado, na maioria dos casos, a sofrimento e interferência com funções pessoais. Desvio ou conflito social sozinho, sem disfunção pessoal, não deve ser incluído em transtorno mental, como aqui definido”.[12] A definição realça alguns aspectos: sofrimento e disfunção pessoal, desvio e conflito social. É esse o campo de trabalho em que nos encontramos. É aqui, em primeiro lugar, que se demarca o objeto de estudo — e não no nível biológico. O normal e o patológico, na psiquiatria, não está alicerçado na biologia, e não há outra resposta: a norma, de que se trata, é a norma social.
Avançando além de suas classificações, a psiquiatria contemporânea postula uma determinação neurobiológica, em última análise, genética, para os transtornos. O que há é uma petição de princípio: define-se o que é transtorno com base na norma social; em seguida, postula-se para esse transtorno outra base —neurobiológica—, tratando-o como se assim o fosse. E nessa operação, ignora-se inteiramente a diferença entre causa, consequência e correlação.
Basta perfilarmos os transtornos relacionados no DSM (IV) ou na CID (10) para verificarmos que nenhuma caracterização biológica sustenta tais classificações. Darei dois exemplos elucidativos. Há alguns anos o homossexualismo estava incluído no DSM como transtorno mental, enquanto que o tabagismo não estava incluído. Atualmente, ocorre o contrário: o homossexualismo foi excluído e o tabagismo incluído. O que determinou a mudança? Apenas isto: o homossexualismo está mais aceito e o tabagismo menos aceito pela moralidade social contemporânea.
Por outro lado, ainda hoje, mesmo com todo o progresso das neurociências, a mais grave das doenças mentais —a esquizofrenia— não pode ser caracterizada do ponto de vista biológico: seu diagnóstico é sempre e exclusivamente fundamentado na clínica. O que isso mostra? Mostra que, rotineiramente, postulações são tomadas como verdades científicas comprovadas, e o que é mais grave: negando o campo epistêmico na qual são definidas.
É importante observar, ainda, que o advento do DSM é rigorosamente paralelo ao do psicofármaco moderno. E a história de um não pode ser concebida sem a história do outro. O DSM é a substituição das grandes categorias nosológicas de outrora por um grande número de síndromes ou sintomas-alvos, cuja finalidade indisfarçável é servir melhor aos objetivos do tratamento medicamentoso. Nesse contexto, a exclusão da subjetividade é bem-vinda, por melhor permitir a validação estatística. O psicofármaco, esse gadget poderoso do discurso da ciência, é a quintessência do DSM.
O tratamento psiquiátrico medicamentoso visa primeiramente à eliminação do sintoma. Ora, sintoma é aquilo que torna impossível a cada um caminhar pelas vias comuns. “O sintoma é precisamente o que faz com que cada um não consiga fazer absolutamente o que está prescrito pelo discurso de seu tempo”.[13] Por exemplo, uma fobia pode impedir de viajar de avião ou de entrar no elevador de um edifício; uma gagueira pode inviabilizar uma pretensão de ser orador; uma impotência sexual pode frustrar um encontro amoroso; uma depressão pode prejudicar uma jornada de trabalho. Uma conduta antissocial, por definição, insere-se nessa série. E assim por diante.
Um esquema está em jogo, no que tange à questão abordada. Os mais familiarizados com o contexto poderão acompanhá-lo passo a passo. (1) Identifica-se um sintoma, ou no máximo, uma síndrome (um grupo de sintomas). (2) Dá-se a esse sintoma, ou a essa síndrome, um nome. (3) Transpõe-se esse nome para uma sigla. (4) Postula-se, para o transtorno assim isolado, um substrato neurobiológico. (5) Atribui-se a ele uma etiologia genética. (6) Associa-se a ele um tratamento medicamentoso específico. Na prática, tal esquema tem funcionado às mil maravilhas, do ponto de vista mercadológico. Poderosos interesses podem forjar o que é apresentado como científico.
Resumindo: presencia-se, na atualidade, crescente e radical biologização da psiquiatria; há uma pretensa redução da disciplina a uma especialidade médica, com exclusão da dimensão subjetiva e sua consequente neurologização. A adoção do DSM como classificação está inteiramente subordinada a uma clínica da medicação, que passou a ser o enfoque terapêutico com supremacia quase absoluta. O tratamento visa firmemente à normalidade e à adaptação social, numa perspectiva que se define como ateórica e apolítica, e que tem como aliadas naturais as terapias cognitivo-comportamentais (TCCs).
A ideia de norma social é correlata da ideia de norma moral, é a sua reedição atualizada. Constatação que faz ressoar a assertiva segundo a qual o tratamento moral tornou-se o núcleo fundamental da terapêutica psiquiátrica.[14]
Na verdade, desde sempre foi assim. Quando Pinel se dirigiu à Bicêtre e à Salpêtrière para o seu ato fundador, já encontrou lá, previamente selecionados pela sociedade, os tipos que deveria investigar e tratar. A postulação extrema de Griesinger merece ser contestada, nesse momento de hegemonia da psiquiatria biológica, por outra postulação extrema: a doença mental é, antes de tudo, doença social.
A saúde mental e a ordem pública
O Relatório Sobre a Saúde no Mundo 2001, da Organização Pan-Americana de Saúde e da Organização Mundial de Saúde, tem o seguinte título: Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança.[15] O novo modelo, ou seja, a nova concepção e a nova esperança, é todo ele baseado nos transtornos catalogados pela CID-10. O que se procura é certa ordem na casa a partir dessa referência.
O campo da saúde mental é o resultado de uma reorganização do campo da psiquiatria. Entraram em cena outros saberes, outros profissionais, outros serviços. A psiquiatria, enquanto disciplina, é hoje uma parte importante, mas, apenas uma parte do campo da saúde mental. Talvez sua importância maior seja esta: fornecer a descrição e a classificação dos transtornos mentais e comportamentais. Definir o que deve ser tratado e a que objetivo o tratamento deve visar.
Em sua conferência sobre Saúde Mental e Ordem Pública, Jacques-Alain Miller afirma que “a saúde mental não tem outra definição que a da ordem pública”. Pouco adiante, acrescenta: “E, com efeito, parece-me que não há critério mais evidente da perda da saúde mental que aquele manifestado na perturbação dessa ordem”. Mais adiante, Miller corrige a sua definição: há perturbações das quais se incumbe a saúde mental e outras que concernem à polícia ou à justiça. O critério operativo é a responsabilidade: se o perturbador é responsável, deve ser castigado; se irresponsável, deve ser curado (para a criminologia, a enfermidade mental chega a suspender o sujeito de direito). “A melhor definição de um homem em boa saúde mental é que se pode castigá-lo por seus atos”. [16]
Lacan, por sua vez, comenta que os trabalhadores da saúde mental aguentam a miséria do mundo, e que fazer isso “é entrar no discurso que a condiciona, nem que seja a título de protesto”.[17] Refere-se ao discurso do Senhor contemporâneo — o discurso capitalista —, que trouxe a globalização que conhecemos na atualidade. O mundo globalizado introduz a universalização de modos de gozo uniformizados. É um mundo padronizado, onde impera a ideologia da avaliação; em que se pretende a quantificação da própria subjetividade; em que prevalece o homem sem qualidades. Nesse contexto, tudo o que é da ordem da diferença ou da singularidade é mal tolerado. Motivo pelo qual Lacan previu, para nosso futuro de mercados comuns, uma extensão cada vez mais dura dos processos de segregação.
A questão principal, tanto para a psiquiatria como para a saúde mental, não é tanto a definição de transtorno ou de sofrimento mental. A questão principal é fundamentar o tratamento na normalização, ou no retorno à normalidade. Quando as coisas são postas nesses termos, e é nesses termos que elas são postas, permanece intacta, ou mesmo reforçada, a lógica da exclusão. A normalização, como base do tratamento, é a versão contemporânea do tratamento moral, a sua reedição. É uma perspectiva que põe como imperativo o todos iguais. Uma perspectiva que visa à anulação da diferença. Ora, assim como tantos outros transtornados ou sofredores, o louco é irredutivelmente diferente; vê-se então, com clareza, o impasse no qual desemboca uma diretriz como essa.
A saúde mental trabalha para a normalização e por definição é ordem social. Por conseguinte, ainda que tenha contribuído para reduzir a segregação no nível dos hospícios, ela pode contribuir para reforçá-la, em outros níveis: é o que se chama de neo-segregação
Uma perspectiva psicanalítica
O que foi apresentado até o presente momento permite a seguinte conclusão: a psiquiatria e a saúde mental definem o normal e o patológico em bases diferentes daquelas que fundamentam a diferenciação levada a termo pela medicina. Farei considerações, agora, sobre a abordagem psicanalítica do tema.
Em primeiro lugar, situarei alguns equívocos. A psiquiatria contemporânea, rigidamente biologicista, tem tratado os transtornos mentais e do comportamento como distúrbios em última análise cerebrais, cuja determinação seria genética, além de considerar o homem um animal como qualquer outro, com um cérebro mais desenvolvido e um genoma mais complexo. E a psicanálise tem sido criticada por simplesmente desconhecer tudo isso.
Não se trata de desconhecimento, mas de discordância. A psicanálise conhece o condicionamento biológico do sujeito. Ela sabe que todos os atos do sujeito — e não apenas os chamados “patológicos” — têm assento no cérebro. E sabe que todas as tendências são influenciadas por maior ou menor predisposição genética.
A psicanálise conhece, ainda, a posição do homem na escala evolutiva. Enfim, embora não seja uma ciência (por uma boa razão: ela trata de singularidades não compatíveis com o método estatístico da ciência), é herdeira da tradição racionalista do iluminismo.
Passo agora às discordâncias. A psicanálise não concorda que determinada vivência seja considerada uma doença pelo simples fato de ter uma base biológica. Nesse ritmo, toda vivência seria uma doença, pois toda vivência tem uma base biológica.
Por outro lado, também não é sustentável utilizar a gravidade de uma vivência como critério para defini-la como doença. Em certa ocasião, ouvi um psiquiatra biológico afirmar: “a depressão mata, a depressão é uma doença”. Ora, nem toda doença verdadeira é grave, e nem tudo que é grave é doença. A miséria, a corrupção e a violência urbana são graves, e matam, mas não são doenças. A não ser que se utilize o termo doença como expressão metafórica tão ampla que perca totalmente o valor de conceito.
Além disso, por mais que as neurociências avancem, o estudo biológico do cérebro jamais esgotará a complexidade das questões estudadas. No nível do sujeito, existem outros princípios e outras leis. Farei um paralelo que tem limites sérios, mas que tem seu alcance. Mesmo num sistema muito mais simples, como o computador, software é inteiramente condicionado pelo hardware; mas uma coisa é estudar o hardware, outra coisa são as infinitas possibilidades que se abrem no software.
No que se refere à herança genética, pode-se dizer: nenhum dos chamados transtornos mentais e do comportamento tem determinação genética. O que existe é predisposição genética. O que se herda é o terreno. Tome-se o mais grave dos mencionados distúrbios: a esquizofrenia. Pesquisas com gêmeos monozigóticos (que têm, portanto, a mesma carga genética) mostram que, quando um deles fica esquizofrênico, em 50% dos casos o outro também fica. Índice tão alto é utilizado para mostrar a etiologia genética. A mesma pesquisa, porém, serve para demonstrar que não há determinação genética, pois 50% dos casos não se tornaram esquizofrênicos.[18] Se houvesse determinação, a cifra seria 100%.
A última discordância é a consideração do homem simplesmente como um animal com o cérebro mais desenvolvido e o genoma mais complexo. Existe uma abordagem contemporânea que busca “esclarecer” a conduta humana a partir da comparação com a conduta de outros animais. Para a psicanálise, tal perspectiva é ingênua e simplista.
O genoma do homem é mais complexo e o seu cérebro é mais desenvolvido: o problema crucial, porém, não está aí. Para a psicanálise o homem é um animal, sim, mas um animal político. Entre o humano e o animal existe continuidade, mas existe, sobretudo, ruptura. Ou seja, é a ruptura, e não a continuidade, que marca a relação do humano com o animal. A que se deve tal ruptura? A resposta é precisa: à linguagem. O humano, por excelência, é o reino da linguagem, matriz do sujeito, de sua cidade, de sua cultura.
Para encerrar tema tão amplo, darei um exemplo. Com a invenção dos métodos anticoncepcionais, a sexualidade ficou desvinculada da reprodução, o que contribuiu para a liberação dos costumes. Em seguida, com a reprodução assistida, criou-se a reprodução separada da sexualidade. É a subversão da biologia realizada pelo falante.
Abordagem psicanalítica dos conceitos de normal e de patológico
A fundamentação médica para a definição do normal e do patológico é consistente, e o termo doença, a rigor, deveria restringir-se ao sentido médico. Entretanto, mesmo para a medicina, a questão se complica quando se percebe que há um sujeito no doente.[19] Em poucas palavras, no caso único, a doença não se reduz à lesão e disfunção do corpo-máquina.
A definição do normal e do patológico em termos biológicos é apenas parte da questão. A medicina vai além, quando se define por prevenir ou corrigir o patológico, visando à normalidade. Está em jogo uma posição ética, e mesmo uma posição política. A cientificidade está presente, também, na composição dos tratamentos, que se sucedem a tal escolha.
Na época contemporânea, a medicina como prática social está longe de se restringir às suas finalidades terapêuticas. Há um imenso capítulo relativo à medicalização dos costumes, que aqui será apenas lembrado.
A psicanálise discorda da psiquiatria e da saúde mental por tratarem os transtornos mentais e do comportamento como doenças, sendo que a grande maioria deles não é caracterizável como tais.
Por outro lado, tratá-los visando sumariamente à eliminação dos sintomas é adotar uma perspectiva normalizadora, que pressupõe um ideal (a saúde mental)[20] e que contribui para o conformismo e para a adaptação social. Qual o problema? O que a psicanálise tem contra a normalização e contra a adaptação social?
É importante ressaltar, com Miller, que, “embora extraída da estatística, decidir conformar-se à norma, fazer da norma a lei, é uma escolha política”.[21] Pode-se acrescentar: é uma escolha ética.
Ora, o problema não é o de fazer tal escolha, eventualmente. Todo o problema é este: fazer da normalização uma regra, por meio do leito de Procusto dos protocolos terapêuticos. Isto é que é totalmente inaceitável para a psicanálise, por uma série de razões.
Como é que a psicanálise lida com o tema? Se não há normal e patológico, o que há?
Um ponto é comum: também para a psicanálise, o começo passa pelo sintoma. E, também para a psicanálise, o sintoma tem os dois aspectos: disfunção e sofrimento. Com efeito, só há indicação de análise quando há sofrimento. O sujeito vem pela sua disfunção e pelo seu sofrimento. E, como foi dito, o sintoma anda na contramão do que está prescrito pelo discurso de nosso tempo; ele não permite ao sujeito trafegar pelas vias da normalidade social. Simplesmente curá-lo é desconhecer tal aspecto. Se o desvio é um problema, sua correção a todo custo pode apenas ser outro problema.
Além de disfunção e de sofrimento, por conseguinte, há um terceiro ponto: o sintoma é mensagem, ou seja, o sintoma quer dizer alguma coisa, embora o sujeito não saiba o quê, e considere isso um enigma. A outra condição de análise é esta: é necessário que o sujeito queira saber sobre o sintoma, e que suponha que o analista saiba sobre isso (transferência).
Para a psicanálise, não há eliminação de sintoma, há transmutação de sintoma. Quando um desaparece, outro entra em cena, em maior ou menor sintonia com o sujeito. Nesse sentido, é verdade que a psicanálise não cura… e que o chamado sujeito normal é apenas aquele que está em sintonia com seu sintoma.
A psicanálise leva a sério a mensagem contida no sintoma, o que exige o exame da relação do sujeito com seu desejo e com seu gozo (fantasia). Aqui, várias possibilidades se apresentam. Não são doenças, são estruturas clínicas. Cada sujeito, sem exceção, está inscrito numa das três estruturas clínicas: neurose (cuja operação estruturante é o recalque), perversão (cuja operação estruturante é o desmentido) e psicose (cuja operação estruturante é a forclusão). Quando se diz, por exemplo, que se trata de um psicótico, isso não quer dizer que o sujeito está psicótico, isso quer dizer que ele é psicótico. Pode ser uma psicose não desencadeada, ou uma desencadeada, ou uma estabilizada, mas é sempre uma psicose. O mesmo se aplica às outras estruturas.
As estruturas clínicas, portanto, talvez fossem melhor denominadas estruturas existenciais, e cada uma delas comportaria várias vicissitudes possíveis, dependendo da constituição de cada sujeito, de seus tropeços e das soluções encontradas para os seus impasses. Na primeira parte de seu ensino, Lacan salientou a descontinuidade entre as estruturas, a partir das diferentes operações fundadoras. Na última parte de seu ensino, Lacan evidenciou a continuidade entre as estruturas, a partir das compensações e das soluções que cada um pode construir. A maioria das soluções é autoconstruída.
O uso de medicamentos pode ser considerado uma solução de outro tipo: prótese química, ou moderador de gozo, que traz efeitos, mas não traz respostas, não inclui uma elaboração subjetiva. Não se trata, de maneira alguma, de invalidar o emprego de psicofármacos. O que se pretende é apontar os seus limites. E, o que é mais importante: eles podem estar a serviço de outra ética e de outra política, diferente da que está implicada na perspectiva de normalização e de adaptação social, ou na medicalização de experiências existenciais.
Talvez seja melhor, então, restringir o uso do termo patológico, ou de seu substantivo patologia, à linguagem estritamente médica. Ou, conforme propõe Jacques-Alain Miller, utilizá-lo de maneira forçada, numa catacrese: patologia da ética.[22]
Resumindo: a psicanálise, embora tenha também como ponto de partida o sintoma, trabalha visando não à sua eliminação, mas certa reconciliação do sujeito com o sintoma. Em vez de tratamento do sintoma, tratamento pelo sintoma. O que implica uma mudança da relação do sujeito com o seu gozo, numa perspectiva ética que se realiza no caso a caso e em que a exigência não é adequar-se à norma social, mas, sim, não ceder de seu desejo.
Nas condições reinantes em nossos serviços de saúde, não se pode falar em psicanálise pura, mas em psicanálise aplicada. Qual a diferença? “A psicanálise pura é a psicanálise na medida em que ela conduz ao passe do sujeito, na medida em que ela se conclui pelo passe. A psicanálise aplicada é a que concerne o sintoma, é a psicanálise enquanto aplicada ao sintoma”.[23] Ou seja, a psicanálise aplicada visa à construção ou à transmutação do sintoma, aliada a alguma modalidade de mudança subjetiva.
A psicanálise pura ou aplicada acontece sob outra ética e sob outra política. Pretende um acordo não do sujeito com a sociedade, mas do sujeito consigo mesmo. E pretende não uma adaptação social, mas um laço social a partir de uma singularidade irredutível.
NOTAS
[1] Publicado em WWW.franciscopaesbarreto.com em 09 de maio de 2012 e no livro O bem-estar na civilização (CRV, 2016).
[2] Foucault M. (1987) O nascimento da clínica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, (cc. VII e X).
[3] Canguilhem, G. (1990) O Normal e o Patológico, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, p. 183.
[4] Idem, p. 188.
[5] Lacan, J. (1985) Psicoanálisis y medicina (1966). In: Intervenciones y Textos. Buenos Aires: Manantial, p. 92.
[6] Idem, p. 91.
[7] Ibidem, p. 92.
[8] Foucault M. (1987) O nascimento da clínica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, (cc. VII e X).
[9] : “…Nous devons toujours voir avant tout dans les maladies mentales une affection du cerveau.” In: Griesinger, W. (1865) Traité des Maladies Mentales. Paris: Adrien Delahaye, Libraire-Editeur, p. 1.
[10] Bercherie, P. (1989) Os Fundamentos da Clínica. História e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, c. 8.
[11] Alonso-Fernandez, F. (1968) Fundamentos de la Psiquiatria Actual. Tomo I. Madrid: Editorial Paz Montalvo, p. 26 e 27.
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[21] Miller, J.-A (2005) A era do homem sem qualidades. In: Opção Lacaniana online, março de 2005, p. 2.
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