David Cooper: “Se a psiquiatria tiver de mostrar alguma eficácia, será ao preço de uma transformação tão radical que lhe valerá, ao menos por algum tempo, merecer o nome de antipsiquiatria” (Psiquiatría y Antipsiquiatría, Buenos Aires: Paidos, 1971).
Percebemos, nos dizeres de Cooper, dois aspectos fundamentais: 1º) Ele faz severas críticas à psiquiatria tradicional, rejeitando-a como um todo. 2º) A antipsiquiatria seria a sua antítese, ou o germe de uma nova psiquiatria, na qual se poderia confiar e na qual o êxito seria possível.
Ronald Laing: “Eu não sou antipsiquiatra. Eu sou psiquiatra. Antipsiquiatras são eles.” (Entrevista recentemente concedida no Brasil).
Ao se intitular psiquiatra, Laing faz questão de dizer que antipsiquiatras são “eles”, ou seja, os psiquiatras “convencionais”. Chamo a atenção, nesta sua atitude, para o seguinte: 1º) Assim como Cooper, Laing coloca-se no pólo oposto ao da psiquiatria tradicional. 2º) Ao contrário de Cooper, porém, ele rejeita para si a denominação de antipsiquiatra, além de atribuí-la aos seus “antípodas”.
Fica claro que, para Laing, a antipsiquiatria é algo pejorativo, espúrio ––uma negação do que se deve ser, almejar ou preconizar. Para ele o termo psiquiatria conserva a respeitabilidade. Mas não considera a psiquiatria tradicional digna de respeito: ela, sim, é a antipsiquiatria.
Em poucas palavras: o que é psiquiatria para um, é antipsiquiatria para o outro. Mas tanto Cooper como Laing se opõem à psiquiatria tradicional e propõem uma nova psiquiatria
Está fazendo quase vinte anos que se iniciou o vozerio antipsiquiátrico (no sentido de Cooper). Seria injusto dizer que toda essa movimentação foi infrutífera. A denúncia e a desmistificação do poder psiquiátrico, por exemplo, é uma dívida que temos para com a antipsiquiatria. Mas, ainda que se reconheçam muitas de suas contribuições, a antipsiquiatria corre o risco de converter-se num modismo de relativa efemeridade. Poderá chegar o dia em que, referindo-se a ela, só se possa dizer: foram muitas as vozes, mas poucas as nozes.
Na minha avaliação, a antipsiquiatria poderá esvaziar-se exatamente em função de seu posicionamento ambígüo. Afinal, o que é a antipsiquiatria? É a psiquiatria tradicional ou é a que se opõe a ela? Se a antipsiquiatria é uma psiquiatria que se opõe à psiquiatria tradicional, ela não é, então, um outro tipo de psiquiatria? A antipsiquiatria está dentro ou fora da psiquiatria? Se a antipsiquiatria é um outro tipo de psiquiatria, o novo tipo não poderá se tornar, com o tempo, tradicional? E se isso ocorrer, que nome terão os seus críticos? Ou ela não pensa em críticos?
Gostaria de propor uma concepção de psiquiatria e de antipsiquiatria que não apenas supera estas ambigüidades, como também oferece modelo existencial sustentável a longo prazo. Psiquiatria é a nossa praxis e a teoria que a sustenta. E antipsiquiatria é o permanente desafio crítico que existe (ou não existe) dentro de nós.
Colocada nestes termos, a questão modifica-se em vários aspectos. A psiquiatria tradicional, por exemplo, esclerosou-se e tornou-se uma “doença” exatamente por não ter sido capaz de criticar-se. Ela matou a antipsiquiatria dentro de si.
E uma nova psiquiatria, qualquer que seja ela, terá que abrir espaço, em seu bojo, para aquilo que será seu questionador impiedoso e imperecível.
Ou se faça isto, ou nada então terá mudado.
(Publicado em Reforma Psiquiátrica e Movimento Lacaniano, Itatiaia, 1999)