A MONOCULTURA E A PAISAGEM
(O psicofármaco para a psiquiatria e para a psicanálise)[1]
O emprego do psicofármaco tem sido prática cada vez mais generalizada no mundo contemporâneo. É uma constatação. Como observa Eric Laurent, sua onipresença em nosso campo perturba a clínica, define ideais de eficácia e transforma os serviços de saúde; é objeto de demandas neuróticas, de exigências psicóticas e de usos perversos.[2] Assim sendo, o psicofármaco deve ser tomado pelo psicanalista como questão teórica, clínica e ética. É tema complexo. Comporta várias abordagens; e diferentes desenvolvimentos para uma mesma abordagem. Pretendo enfocar um aspecto da questão e expor minha posição face aos problemas levantados.
Com freqüência, associa-se o emprego do psicofármaco à psiquiatria, supondo-se que a psicanálise simplesmente se oporia a tal tratamento ou, então, nada teria a dizer sobre o assunto. Na minha avaliação, não se trata disso. A questão não é ser a favor ou contra o psicofármaco, é definir qual o seu lugar no tratamento. O que opõe, por exemplo, a orientação psicanalítica à orientação da psiquiatria biológica é a radical diferença na direção do tratamento; como conseqüência, o lugar do medicamento, num caso e noutro, é também diferente. Qual é a radical diferença que existe na direção do tratamento?
Randomização e duplo-cego
Para situá-la da maneira mais clara possível, trarei o exemplo dos ensaios clínicos da psiquiatria biológica, onde se afirma proceder com rigor, inclusive com rigor científico. Suponhamos que se trata de um ensaio para avaliar a eficácia e os efeitos colaterais de um novo antidepressivo. Um trabalho mais abalizado deve incluir três grupos de controle: (1) o primeiro com pacientes que irão receber o novo antidepressivo; (2) o segundo com pacientes que irão receber um antidepressivo já bem estudado e (3) o terceiro com pacientes que irão receber um placebo. Para maximizar a probabilidade de que os grupos sejam comparáveis, a indicação dos pacientes deprimidos para cada um deles deve ser fortuita (at random). A randomização, portanto, consiste na localização fortuita, aleatória, implicando que cada paciente tem a mesma oportunidade de receber cada um dos possíveis tratamentos, e que a probabilidade de que um dado sujeito receba determinada localização é independente da probabilidade de que um outro sujeito receba a mesma indicação de tratamento.[3] Os dois métodos mais comumente usados para alcançar este objetivo são o uso de uma tabela de números aleatórios (random numbers) ou o uso de uma lista de randomização gerada por computador.
Maior rigor se alcança quando, além da randomização, o ensaio clínico é um estudo duplo-cego (double-blind): ninguém, nem os pacientes, nem o responsável pelo procedimento de localização, nem os pesquisadores encarregados do recolhimento dos resultados sabem em qual grupo cada sujeito foi incluído. As pílulas, na sua aparência, são iguais. Somente um outro pesquisador, que controla os trabalhos, sabe quem está tomando o quê. A capacidade de realizar um duplo-cego, portanto, depende do estabelecimento de um tratamento e de um programa de comparação que sejam o quanto possível idênticos.
Os resultados de um ensaio clínico têm base estatística, e para a validação de qualquer associação estatística observada é necessário a exclusão de possíveis explicações alternativas, tais como o acaso, os erros sistemáticos na colheita e interpretação dos dados —a tendenciosidade, ou os efeitos de variáveis adicionais que podem ser responsáveis pelas associações observadas —as interferências. O problema do acaso pode ser resolvido por meio de amostragem suficientemente grande. A tendenciosidade potencial é minimizada pela distribuição aleatória nos grupos de tratamento, enquanto que a tendenciosidade na observação dos resultados pode ser minimizada pelo procedimento duplo-cego. Quanto à interferência, tanto seus fatores conhecidos como os desconhecidos são repartidos entre os grupos de tratamento.[4]
Escala de avaliação e ideal de eficácia
Como foi assinalado, os resultados de um ensaio clínico têm base estatística. E o critério de melhora é este: redução ou supressão dos sintomas. Para que seja possível tal avaliação, os sintomas devem ser quantificados pormenorizadamente. Entram em cena as escalas de avaliação; por exemplo, a Escala de Hamilton para Depressão. Os pacientes, antes de serem distribuídos entre os grupos, devem ser avaliados pela Escala. Após a randomização, os comprimidos são administrados por tempo considerado satisfatório e, neste período, as outras medidas terapêuticas são padronizadas. Durante e ao final do ensaio clínico, realizam-se novas avaliações pela mesma Escala. Além dos sintomas, a avaliação inclui exames complementares e questionários sobre os efeitos colaterais. No final do ensaio, os resultados devem ser submetidos a análise estatística, para o estudo da evolução comparada dos grupos.
O que está sendo medido, portanto, é a eficácia, entendida como redução ou eliminação dos sintomas, e os efeitos colaterais de um novo antidepressivo, comparado a um antidepressivo já bem conhecido e a um placebo. O placebo é uma substância quimicamente inerte ou inócua. Um problema nos ensaios clínicos para testar medicamentos é a bem documentada tendência dos indivíduos a dar resposta favorável a qualquer terapia, sem considerar a eficácia fisiológica do que eles recebem. Este fenômeno é referido como o efeito placebo.[5] Se um estudo não usa o controle-placebo, é impossível dizer se resultados subjetivos são devidos ao atual ensaio de tratamento, à atenção extra que os participantes recebem, ou simplesmente à sua crença de que o tratamento ajudará.
Qualquer que seja o resultado de um ensaio clínico, ele deixa fixado um ideal de eficácia: o de eliminar todos os sintomas sem causar nenhum efeito colateral.
A exclusão do sujeito
Apresentei, de modo sucinto, os aspectos fundamentais da metodologia dos ensaios clínicos que são realizados segundo a perspectiva da psiquiatria de orientação biológica. Embora exista diferença entre a situação de pesquisa e a situação clínica, é de grande importância a consideração e a análise do que se passa num ensaio dessa natureza. Primeiro, porque os resultados das pesquisas influenciam a clínica. E segundo, porque é necessário explicitar as razões que definem as condições de um ensaio clínico. O que, em outras palavras, implica por em questão o procedimento.
No exemplo de ensaio clínico que eu trouxe, o que é que se pretende tratar? Sem dúvida, o ponto de partida é a idéia de depressão, enquanto transtorno mental ou doença. Este é o significante que determina os três grupos; estar deprimido é o critério que define a inclusão de cada paciente. Pode haver variações quanto ao número ou quanto à intensidade dos sintomas, mas todos os incluídos são deprimidos. É a depressão que vai ser tratada. São descartadas, no cômputo final, as particularidades que diferenciam cada caso do outro. É cada um enquanto deprimido que interessa e, quanto a isso, há uma identificação de todos os pacientes.
O método duplo-cego, por sua vez, pretende ser, tanto em relação aos pacientes como em relação aos pesquisadores, um recurso a mais para a exclusão da subjetividade, tratada como interferência ou fator perturbador. O cuidado com que o objetivo é perseguido é tal que sugere para o duplo cego um melhor nome, ou seja, duplo-surdo. O desconhecimento da subjetividade tem por correlato o desconhecimento da transferência. O que não impede, obviamente, que esta continue existindo e produzindo efeitos. Uma das expressões da transferência é o chamado efeito placebo. Nos ensaios clínicos, um grupo de controle é constituído exclusivamente na tentativa de exorcizá-lo.
A desconsideração da transferência traz várias conseqüências para o trabalho do psiquiatra biológico. Uma delas, que cabe aqui pelo menos assinalar, é certa destituição da suposição de saber, que estaria na comtemporaneidade, sendo transferida para a indústria farmacêutica.
Outro aspecto importante a ser examinado é o ideal de eficácia. O antidepressivo ideal seria aquele que abolisse todos os sintomas sem causar efeitos colaterais. Evolução caracterizada por uma negativização: no dia em que fosse descoberto teríamos, no fim da pesquisa, um grande vazio, um vazio de sintomas, que iria desfazer a identificação dos pacientes entre si: eles deixariam de ser deprimidos. Simultaneamente, porém, uma nova identificação se construiria: com os indivíduos normais, o que resultaria, assim, numa plena adaptação social. Confirmando a direção que acabo de apontar, convém ressaltar que muitos ensaios clínicos, além da escala de avaliação para medir a depressão, já utiliza outra escala de avaliação, para medir a adaptação social (EAS).[6]
Da depressão à adaptação social, o grande excluído é o sujeito e sua singularidade.
O normal e o patológico
Poderia ser objetado que, afinal, este é o preço a ser pago para a transformação da psiquiatria numa ciência. Afirmação que é aparentemente razoável, pois, segundo certa concepção, é próprio do método científico a exclusão da subjetividade. Entretanto, não é correto afirmar que a psiquiatria dos ensaios clínicos tenha alcançado o estatuto de ciência, ou tenha avançado grandes passos nessa direção. Por que não?
O método utilizado nos ensaios é subsidiário do método científico. Mesmo admitindo isso, o problema é que métodos científicos podem ser utilizados para fins não científicos. O fim não científico, no caso, é a eliminação dos sintomas dos chamados transtornos mentais e do comportamento.
O que está em pauta, na verdade, é a delimitação do patológico e do normal em psiquiatria. Se os transtornos mentais e do comportamento constituem o patológico, cabe a pergunta: o que constitui o normal? Não há outra resposta: o normal, em psiquiatria, refere-se à norma entendida como cultural ou social. O tratado de psiquiatria de Alonso-Fernandez apresenta a questão de modo muito claro. Trarei algumas de suas passagens.
“No conceito de norma devemos distinguir um conteúdo e uma forma-função. O conteúdo da norma, equiparável ao termo médio, tem uma base estatística e, como assinala a doutrina do relativismo cultural, não constitui um estado absoluto, nem tem um fundamento ontológico, mas está subordinado ao tempo histórico, ao lugar e às peculiaridades de uma cultura. Uma norma estável de validade geral não existe. Mas o conteúdo da norma está condicionado fenomenologicamente pela existência da norma como função. A função da norma existe em todo tempo e lugar. Transcende, pois, ao relativismo. Em qualquer cultura e em qualquer época histórica existe para o homem um modo considerado normal para a vivência de um acontecimento e para a escolha e atuação a respeito de uma dada situação.”[7]
Pouco mais adiante, o autor estabelece a correlação.
“Em virtude do exercício da faculdade de tipificação todos nós co-participamos do mesmo mundo. O mundo normal é um mundo tipificado. O mundo do doente psíquico se distingue fundamentalmente do normal não por seu conteúdo, mas por sua forma. Podemos descrever a patologia da tipificação como o mórbido.”
Para, depois, concluir.
“Eis aqui minha definição predileta da psiquiatria: ‘A psiquiatria é o ramo humanista por excelência da medicina que trata do estudo, da prevenção e do tratamento dos modos psíquicos de adoecer.’ A idéia do modo psíquico de adoecer, segundo acabo de expor, se funda na perda involuntária da faculdade normativa.”
Desde a psiquiatria clássica até a psiquiatria biológica, perpetua-se a postulação organicista segundo a qual a doença mental teria determinação biológica –em última análise, genética. Mas, ao mesmo tempo –contradição fundamental!– o patológico vem sendo concebido de diferentes maneiras, mas sempre em contraposição à norma cultural ou social. E desde sempre a cura tem situado, no seu horizonte, a adaptação social.
Se levarmos em consideração que o discurso normativo é correlato do discurso da moralidade, podemos pensar o tratamento moral, de Pinel, como o núcleo fundamental da terapêutica psiquiátrica.[8]
O tratamento do sujeito
Se a psiquiatria trata a doença (a depressão, por exemplo), a psicanálise trata o sujeito. Ponto que, já no início, marca a diferença radical da direção do tratamento. Por maior que seja a identificação de um sujeito deprimido com outro sujeito deprimido, prevalece, basicamente, a diferença.
A psicanálise também parte do sintoma, do sofrimento do sintoma. Mas, não basta que o sujeito queira alívio para o sofrimento, por meio do levantamento do sintoma, não basta a demanda terapêutica, que seria suficiente para um tratamento psiquiátrico ou para uma psicoterapia. A demanda analítica exige mais: implica querer tratar o sintoma não só pela vertente do sofrimento como pela vertente do enigma, ou seja, um querer saber sobre o enigma do sintoma. Um passo importante é dado quando o analista é suposto como aquele que detém esse saber. A postulação do analista como sujeito suposto saber é a entrada na transferência.
O saber de que se trata é do próprio inconsciente do sujeito; o inconsciente como um saber que não se sabe. No contexto, a interpretação pode então ter lugar, como uma leitura, como uma decifração do sintoma, explicitando seu significado inconsciente. Uma análise também produz efeitos terapêuticos, com o levantamento de sintomas. Freud chegou a assinalar que, freqüentemente, tal resultado está a serviço da resistência, evitando os verdadeiros objetivos de uma análise, caracterizando uma “fuga para a cura”.
Quais seriam os objetivos de uma análise? O querer saber sobre o sintoma pode levar à leitura e desaparição, mas pode, numa evolução mais ousada, caminhar em direção ao fantasma, ou, em outros termos, à relação do sujeito com seu gozo. E é isso que, em última instância, uma análise visa mudar.
A psicanálise não fia a eliminação do sintoma, pois, a rigor, não haveria ali desaparecimento, mas, sim, transmutação, metamorfose. Na última etapa de seu ensino, Lacan reelabora o conceito, denominando-o então sinthoma, e propõe: “Ame o seu sinthoma”, tal como Freud disse do psicótico que ama o seu delírio. E situa, no final da análise, uma reconciliação do sujeito com o seu sinthoma, uma identificação, o sujeito como sinthoma. Proposição que o aproxima à idéia de estilo.
Considerações tão sinópticas têm objetivo preciso: ressaltar que, do sintoma (symptôme) ao sinthoma (sinthome) há, no tratamento psicanalítico, um avanço do sujeito em direção aquilo que nele existe de mais singular.
A ética da psicanálise
O tratamento psiquiátrico está desde sempre sob a égide de uma norma abstrata e geral, correlata e subsidiária da moralidade social. A psicanálise, por sua vez, se rege por uma ética que não coincide com a moral e que até mesmo se opõe a ela; ética subordinada à singularidade do desejo do sujeito. Enquanto que a moral é uma exigência de conformidade a um código social, a ética é uma exigência de autenticidade, busca do que é mais verdadeiro de si mesmo ou do que é mais verdadeiramente si mesmo.
Como foi sublinhado, no tratamento psiquiátrico de orientação biológica a validação tem base estatística e um final ideal pressupõe um vazio de sintomas, um vazio de doença. Por outro lado, se cada sujeito é diferente do outro, cada análise é conseqüentemente diferente da outra, cada caso requer sua própria teorização, não havendo estatística possível nesse âmbito. E no final de uma análise encontramos o passe, que é uma boa história que pode ser contada, a história do próprio sujeito.
A diferença radical da direção do tratamento deve ser precisamente formulada, portanto, em termos éticos.
Psicanálise e psicofármaco
Pretendo agora introduzir a seguinte questão: Haveria lugar possível para o psicofármaco no contexto de um tratamento psicanalítico?
Lembraria inicialmente que, tanto da parte de Freud como da parte de Lacan, não existe otimismo ou alento em relação às possibilidades de uma psicanálise; existe, pelo contrário, uma cautela fundamental. Em Freud, por exemplo, pode-se identificar uma preocupação diante da reação terapêutica negativa; uma avaliação sumária do supereu do melancólico, como “Uma cultura pura da pulsão de morte”[9]; um desencorajamento do analista frente à psicose. E em Lacan podemos depreender, com Miller, a fórmula que pode advir como uma advertência: nem tudo é significante.[10] Todas essas precauções apontam para um mesmo rumo, onde está: o gozo.
Por outro lado, há indicações precisas de que o psicofármaco poderia ser uma intervenção possível quando não se pode contar com a eficácia do significante. Trarei algumas delas. Uma, de Freud: “Esperamos que o futuro nos ensinará a agir diretamente, com a ajuda de substâncias químicas, sobre a quantidade de energia e a sua distribuição no ‘aparelho psíquico’. É possível que descubramos, então, outras possibilidades terapêuticas, ainda insuspeitadas”.[11]
Outra citação, de Lacan, podemos encontrá-la no Pequeno discurso aos psiquiatras (1967): “A psiquiatria entra na medicina geral a partir da seguinte base: que a medicina geral, entra ela mesma, inteiramente, no dinamismo farmacêutico. Evidentemente, produzem-se aí coisas novas: obnubila-se, tempera-se, interefere-se ou modifica-se…”[12] Em seu artigo Como engolir a pílula, Eric Laurent comenta a citação, dizendo que os termos obnubilação e tempero situam o psicofármaco a partir da família dos anestésicos. E acrescenta: “Num texto mais antigo, Lacan fazia a equivalência entre o Édipo e uma dose de anestésico. Poderíamos ainda reformulá-la como primeiro paradigma do gozo em Lacan. O Édipo permite a significantização, a neutralização do gozo. Nesse sentido, ele é sublimação ou anestesia”.[13]
Voltarei, agora à pergunta: Haveria lugar para o psicofármaco no contexto de um tratamento psicanalítico? Eu daria como resposta sim, deixando bem claro: é radicalmente diferente o lugar ou a função do psicofármaco num tratamento psicanalítico e num tratamento psiquiátrico de orientação biológica. No último, como foi exposto, o medicamento visa a redução ou eliminação dos sintomas, buscando a adaptação ou a conformidade social. Por outro lado, um emprego possível do psicofármaco, que estaria coerente com a perspectiva psicanalítica, visaria seus efeitos não sobre os sintomas, mas sobre o gozo. O psicofármaco estaria a serviço, então, de certa regulação ou de certo tempero do gozo, operação essa de algum modo impossibilitada de ser efetivada pela via do significante. E, o que é mais importante, seria uma intervenção sob a ética da psicanálise, buscando a autenticidade do sujeito.
As citações de Freud e de Lacan permitem-nos precisar, portanto, qual seria a diferença entre a função do psicofármaco num tratamento psiquiátrico de orientação biológica e num possível tratamento psicanalítico. Resumindo: para a psiquiatria, o psicofármaco visa o sintoma, para a psicanálise, visaria o gozo. Nos dizeres de Freud, as substâncias químicas influiriam sobre a quantidade de energia e sua distribuição no aparelho psíquico, ou seja, na regulação do gozo. Nos dizeres de Lacan, haveria uma equivalência entre o Édipo e uma dose de psicofármaco, na medida em que ambos introduzem uma neutralização, um tempero do gozo.
Para terminar, uma alegoria. Para a psiquiatria biológica, aquilo que se trata, as doenças ou transtornos mentais, seriam tal como monoculturas. A depressão, por exemplo, poderia comparada a uma floresta de eucaliptos. Um eucalipto pode ser diferente do outro. O tronco, mais grosso ou mais fino; a altura, maior ou menor; mais ou menos galhos e assim por diante. Existem diferenças, mas os eucaliptos são fundamentalmente iguais, e quem avista a floresta não distingue um do outro, tampouco uma floresta da outra.
Para a psicanálise, procurarei inspirar-me num comentário de Miller sobre uma formulação de Lacan: “Não temos critérios, temos paisagem”.[14] Ou seja: não há critérios para definir o que seja um sujeito no final de uma análise. O que não quer dizer que não seja possível defini-lo. É possível defini-lo um por um, caso por caso. Assim como uma paisagem. Uma paisagem tem harmonia própria; é necessariamente incompleta, na medida em que sempre é possível incluir mais um detalhe; e é sempre diferente de outra paisagem.
[1] Publicado em CLIQUE (Revista dos Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano), nº 1. Belo Horizonte: abril de 2002, pp. 54-61 e no livro Ensaios de Psicanálise e Saúde Mental, Scriptum, 2010.
[2] Laurent, E. (2002) Como engolir a pílula? (p. 25). In: Clique, Ano I, nº 0. Belo Horizonte: Revista dos Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano
[3] Hennekens, C. H. and Buring, J. E. (1987) Epidemiology in Medicine, (p. 186). First Edition. Boston/Toronto: Little, Brown and Company.
[4] Idem, ibidem, pp. 204-205.
[5] Idem, ibidem, p. 193.
[6] Gorenstein, C. & Cols. (2000) Escalas de Avaliação Clínica em Psiquiatria e Psicofarmacologia (p. 401). São Paulo: Lemos-Editorial.
[7] Alonso-Fernandez, F. (1968) Fundamentos de la Psiquiatria Actual (pp. 26-27). Tomo I. Madrid: Editorial Paz Montalvo.
[8] Birman, J. (1978) A psiquiatria como discurso da moralidade (pp. 344 e sgtes.). Rio de Janeiro: Graal.
[9] Freud, S. (1976) O Ego e o Id (1923) (p. 69). ESB, Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago.
[10] Miller, J.-A. (1987) Duas Dimensões Clínicas: Sintoma e Fantasia (p. 94). In: Percurso de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
[11] Freud, S. citado por Delay, J. New trends in psychopharmacology. In: Proceed. Of the IV World Cong. Of Psych., 1:283-287, Sept. 1966.
[12] Lacan, J. (1967) Petit discours aux psychiatres (inédito).
[13] Laurent, E. (2002) Como engolir a pílula? Op. cit. p. 29.
[14] Miller, J.-A ((1997) Respostas ao paradoxo (p.569). In: Lacan Elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.