A Caverna do Diabo

 

—O Diabo existe —esbraveja Jorge Velho— e é possível dizer isso com a mesma certeza de que Deus existe, pois, a existência de um exige a existência do outro —conclui com filosofia.

—Está certo —concorda Zeca Brito— mas é preciso dizer mais do que isso. A presença de Deus é sutil, é impalpável, é incerta. Já o Diabo faz aparições ruidosas.

A conversa transcorre, regada a cerveja e pastel, no Barzim do Jatobá, em Rio Acima, cidade mineradora às margens do Rio das Velhas e nas fraldas da Serra do Gandarela. O grupo de participantes às vezes engorda tanto que enche o bar.

—Explique-se melhor —fustiga Jorge Velho.

—Serei claro —continua Zeca Brito. —Aqui em Rio Acima existe uma mulher que já viu o Diabo… em pessoa, se é que se pode dizer assim. Ela conta tudo com detalhes. É precisa, convincente e não entra em contradições. Tudo aconteceu na Caverna do Diabo, que fica na Serra do Gandarela. Outras pessoas têm relatos semelhantes, mas, com depoimentos mais vagos. Vale a pena ouvi-la. Ela se chama Joaninha.

Jorge Velho concorda e propõe uma visita. Um grupo pequeno de pessoas.

Joaninha recebe bem o grupo, orgulhosa pelo interesse em sua história. E vai direto ao assunto.

—Em nossa cidade, existem homens que ganham a vida garimpando córregos, em busca do pouco de ouro que ainda resta.  Minha escolha é diferente. Depois de vários tipos de trabalho, descobri algo que, além de me dar mais dinheiro, é o que mais gosto de fazer: colho marcelas na Serra do Gandarela. Conheci um comprador em Belo Horizonte que paga bom preço, e há anos só faço isso!

Sua rotina, porém, é dura: acorda às quatro horas, toma café com pão, faz sua marmita e segue de bicicleta pela estrada de terra que serpenteia a Serra em direção ao Mirante. O trabalho se dá em locais diferentes. Quando a flor fica escassa num ponto, ela muda para outro. Nessa busca incessante, um dia, ela bate em lugar inusitado. Trilha difícil, mas, com fartura de marcelas, o que pressupõe lugar pouco visitado. A certa altura, a trilha se estreita, tendo, de um lado o paredão rochoso da montanha e de outro, um despenhadeiro. Algumas centenas de metros adiante a trilha se abre para um descampado, onde as marcelas voltam a aparecer com abundância, e em seguida, algumas árvores. Mais ao fundo, encravada na rocha, uma caverna. Não se trata de caverna natural; claramente, foi produzida por homens, ferramentas e máquinas. Está completamente abandonada, mas é possível penetrar em seu vão, que constitui como que uma grande sala, e observar vários resíduos minerais ali presentes.

Joaninha fica sabendo, em Rio Acima, que outrora existia, naquela gruta, uma casa de fundição. Fica sabendo mais: aquele é considerado um local mal assombrado. Eis a razão pela qual as flores ali sobram intactas. Apesar das advertências, ela prefere continuar arriscando, pois, afinal, é seu ganha-pão.

Dia de inverno. Lua nova. Joaninha não está longe da gruta e não percebe que o dia escurece mais cedo. Em certo momento, começa a ouvir um som ritmado. Não é som de instrumentos musicais: parece mais metais se arranhando. Aos poucos, o som se torna mais estridente e estranho: algo que ela nunca havia ouvido. Um misto de medo e curiosidade toma conta de seu corpo. Resolve aproximar-se da gruta, escondendo-se atrás de uma árvore, de modo que pode ver sem ser vista. E o que vê?

Anoitece, mas não é noite fechada ainda. Dá para ver que existe, além do ruido penetrante, uma dança macabra no salão da caverna. É possível distinguir um personagem bípede, peludo, com cauda e chifres, envolto em baforadas de fumaça. O que ele pretende com isso?

Joaninha prefere nãos saber a resposta. É melhor correr dali. E nunca mais voltar.

Para muitos, a história apenas confirma suspeitas. Outros acrescentam ter ouvido sons semelhantes vindos do cemitério. O que se recomenda, então, é guardar distância.

No sábado seguinte a conversa com Joaninha é tema central no Barzim do Jatobá. Discussão alegre e animada. Entra em cena Dr. Bonifácio, advogado franzino e bigodudo de Belo Horizonte, que tem casa de campo em Rio Acima. Passa sempre ali para comer um pastel e, quem sabe, tomar uma cerveja. Ouve com atenção a história da Caverna do Diabo. Não se contém.

— Como é que vocês acreditam numa história como essa! É inacreditável! Aliás, para ser mais preciso: Deus e o Diabo só existem para quem acredita neles! Se ninguém acreditasse, eles não existiriam! É o contrário do que vocês dizem: são criações humanas.

No exato momento passa um carro cujo proprietário escreveu no para-brisa traseiro: PRESENTE DE DEUS. Dr. Bonifácio aponta a aproveita.

—Olhem ali: vocês acreditam em Papai Noel? Pois é. Deus não é mais do que isso: o Papai Noel dos marmanjos.

Debate acalorado. A história de Joaninha volta à baila, como prova da existência do Diabo. Dr. Bonifácio argumenta.

—Mulheres têm tendência ao misticismo. Nossa Senhora e o Diabo preferem aparecer para elas… Como diz o ditado: assombração sabe para quem aparece. Uma história como essa não prova absolutamente nada.

A discussão chega a impasse. Como resolvê-lo? O próprio Dr. Bonifácio tem uma saída.

—Olhei no meu calendário: estamos no inverno e hoje é lua nova. Irei, com noite fechada, à Caverna do Diabo, com uma boa lanterna, e tirarei fotos para comprovar.

Todos acharam uma boa proposta. Contente, Dr, Bonifácio traz de novo seu refrão.

—Não tenho nenhum medo. O Diabo só existe para quem acredita nele.

Às 21 horas Dr. Bonifácio pega seu Jeep e o mapa que lhe fizeram indicando o caminho. Segue pela estrada de terra e se detém no início da trilha que leva à Caverna do Diabo. Dali em diante, segue a pé. Cuidado, pois é noite fechada. A certa altura, a trilha se estreita: sinal de que a Caverna está perto. Pouco depois, o descampado. Dr. Bonifácio joga o foco de luz e vê, à sua frente, a Caverna. Respira fundo. Fica emocionado. É quando acontece algo inesperado. Um mocho, situado numa árvore próxima, solta um longo e altíssimo pio. Para quem é cidadão urbano, um pio de mocho é assustador, mesmo sendo ateu convicto. Dr. Bonifácio joga o foco da lanterna para a árvore e recua um passo, tentando ver alguma coisa. Nada vê e recua mais um passo. Distração fatal: rola pelo terrível despenhadeiro.

No dia seguinte, a Polícia Civil precisa pedir ajuda à de Nova Lima, para resgatar seu cadáver. No Barzim do Jatobá a conversa não pode ser outra.

—Coitado do Dr. Bonifácio —diz Jorge Velho— era uma boa pessoa, apesar de ateu.

—Mas, muito atrevido —completa Zeca Brito— o Diabo não teve outra escolha a não ser empurrá-lo lá de cima.

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