A psicopatia na psiquiatria clássica – Reflexões sobre o tema

 

A psicopatia na psiquiatria clássica:

Reflexões sobre o tema

 

(Apresentado no III Congresso de Psiquiatria Forense, Belo Horizonte, 01/09/2018)

 

 

Historicamente, o conceito de psicopatia evoluiu a partir de duas tendências distintas.

Uma primeira tendência definia como psicopata uma variedade muito grande de tipos fronteiriços, diferentes do neurótico e do psicótico, ou seja, sem formações alucinatórias ou delirantes, nem sintomas aberrantes, mas com desarmonia devida a uma exacerbação de traços que existem, nas devidas proporções, em todas as pessoas. Kraepelin classificou tal grupo como personalidades psicopáticas.

A segunda tendência restringiu o grupo dos psicopatas a casos com grave comprometimento na esfera moral e ética, mesmo com preservação de outras faculdades mentais, o que foi designado loucura moral por Pritchard, em 1835.

O germe da noção de psicopatia está na nosologia pinel-esquiroliana, na primeira metade do século XIX; mais especificamente, na concepção de monomania instintiva. Pouco mais adiante, Morel inclui tal tipologia na sua teoria da degeneração. Magnan, por sua vez, na mesma linha, falará em degenerados e desequilibrados. São abordagens constitucionalistas, fortemente carregadas com o peso da hereditariedade (as taras) e da perspectiva moralista.

Na escola alemã, Kraepelin, na quinta edição de seu Tratado (1896), incluirá, nas doenças mentais congênitas, e entre as neuroses gerais e as suspensões do desenvolvimento psíquico, os estados psicopáticos, concebidos como degenerações e nos quais ele distingue:

  1. Desequilíbrio constitucional;
  2. Loucura obsedante;
  3. Loucura impulsiva;
  4. Inversão sexual [1].

Na oitava e última edição do Tratado (1913) o termo utilizado é personalidades psicopáticas, tidas como distúrbios bastante enraizados na constituição da personalidade. São citados os seguintes tipos:

  1. Instáveis;
  2. Irritáveis;
  3. Impulsivos;
  4. Excêntricos;
  5. Mentirosos;
  6. Disputadores;
  7. Antissociais [2].

Pouco depois, Bleuler retoma esse capítulo de Kraepelin, com algumas modificações. Faz uma renomeação: psicopatias, concebida como meros desvios psíquicos da normalidade, e nelas inclui as aberrações sexuais (ou perversões sexuais), tema que já havia sido trabalhado antes por vários autores: Magnan, Ball, Krafft-Ebbing, Havelock Ellis.

A orientação proposta por um outro autor deverá agora ser enfatizada. Trata-se do psiquiatra inglês Pritchard, que lança. Em 1835, o conceito de loucura moral (moral insanity), tendo como substrato psicológico uma “perversão mórbida dos sentimentos naturais, dos afetos, das inclinações, do humor, dos hábitos, das disposições morais e dos impulsos naturais, sem qualquer alteração notável, ou defeito, da inteligência, das faculdades do conhecimento ou do raciocínio, e particularmente sem qualquer ilusão patológica ou alucinação” [3].

A orientação de Pritchard estabelece que a característica mais essencial da psicopatia é o seu feitio antissocial, ou seja, ele prioriza a perturbação das relações sociais, e com isso torna-se o principal precursor da concepção contemporânea.

 

REFLEXÃO

 

Não pretendo me limitar a sinopse histórica. Trarei elementos para uma reflexão.

A psiquiatria clássica, aqui referida, constituiu-se como discurso médico ancorado em bases moralistas. Na etiologia das alienações mentais, as causas morais eram as mais importantes. E a principal terapêutica era o tratamento moral, proposto, articulado e teorizado por Pinel.

A ênfase nos aspectos morais alcançou seu ápice com Morel, com sua célebre teoria da degeneração. Para ele, as doenças mentais eram o resultado de degradação moral transmitida por hereditariedade genética. Por mais insustentável que fosse tal teoria (já na época), é impressionante verificar como dominou toda a psiquiatria clássica, durante cerca de um século.

O que quer dizer discurso moralista? É algo que privilegia a moral social, ou seja, os costumes. A psiquiatria clássica, portanto, concebe a doença mental como afastamento dos valores morais e seu tratamento como reafirmação desses mesmos valores.

Não se trata de nada que não esteja ao alcance das evidências. Afinal, quem eram os alienados mentais? Estavam entre aqueles segregados na Bicêtre e na Salpêtrière, quando Pinel para lá se dirigiu, para, entre outras coisas, fundar a psiquiatria. Ou seja, indivíduos previamente excluidos pela moral social.

Não só a delimitação da doença mental se processou num contexto moralista, como o tratamento psiquiátrico desenvolveu-se a partir de enfoque moralizante. Um passo adiante é considerar o tratamento moral como núcleo fundamental do tratamento psiquiátrico [4].

É verdade que, depois da psiquiatria clássica, o termo moral desaparece da literatura psiquiátrica. Mas, é substituído por outro: normalidade. Na medicina de bases científicas, o normal e o patológico estão alicerçados em sólidas bases biológicas. O que não acontece com a psiquiatria, na qual a norma de que se trata é a norma social.  Ora, norma social é termo correlato e sucedâneo de moral social.

A que se deve comentário tão longo?

Por tudo o que foi dito agora sobre a psicopatia na psiquiatria clássica, por tudo o que foi dito até agora neste Congresso, por tudo o que foi dito sobre o percurso da psiquiatria, duas conclusões devem ser trazidas.

A psicopatia é, por excelência, ANTISSOCIAL.

                              A psiquiatria, por sua vez, é, por excelência, SOCIAL.

É preciso ter isso em mente quando se consideram as relações da psiquiatria com a psicopatia.

Fala-se que o psicopata é intratável. Mas, não há tratamento psiquiátrico que não seja normalizador. A impossibilidade está dada, de saída. A relação do psiquiatra com o psicopata é um beco sem saída.

Tenho escassa experiência com tratamento de psicopatas. Talvez eu jamais chegue a me aventurar nessa área. Não obstante, tentarei uma sugestão para os que aí pretendem alguma coisa. Como seria um tratamento do psicopata que não se guiasse pelo viés da normalização?

O que vou propor se baseia na experiência de uma Professora de Serviço Social da PUC Minas, que coordenou uma prática de extensão em presídios. O trabalho revela presidiários que só prezam uma pessoa: sua própria mãe. E, de fato, quem os visita? Poucas vezes seus pais. Às vezes, seus filhos. Às vezes, suas esposas. Mas, quase sempre: suas mães. São as únicas criaturas que eles respeitam, que mexem com eles, e por quem são capazes de alguma coisa [5].

Minha proposta: na psicopatia, cherchez la mère. Procurai a mãe. Tentai fazer um laço com ela visando ao tratamento.

Embora eu me baseie nas informações da referida Professora, há razões teóricas que reforçam tal ideia. Se a psicopatia é, por excelência, antissocial, isso fala de uma insubmissão à lei. E a lei, tanto a simbólica como a jurídica, tem a ver com a função paterna. Na psicopatia, então, é possível, além de uma hostilidade franca ao pai, uma fusão com o desejo caprichoso da mãe.

 

REFERÊNCIAS

[1] Bercherie, P. (1989) Os Fundamentos da Clínica. História e estrutura do saber psiquiátrico, p. 167. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

 

[2] Nobre de Melo, A. L. (1981) Psiquiatria. Volume 2. 3ª. Edição, pp. 203-4. Rio de Janeiro: Editora Guanabara.

 

[3] Doyle, I. (1961) Nosologia Psiquiátrica, p. 374. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil.

 

[4] Birman J. (1978) A psiquiatria como discurso da moralidade (pp. 344 e sgtes.). Rio de Janeiro: Graal.

 

[5] Magalhães, M. C. S. e colaboradores (2017) O cotidiano de violência na prisão brasileira e seus desafios: Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) Santa Luzia, retrato diferenciado, pp. 217 a 228. In: Práticas de extensão da PUC Minas na APAC Santa Luzia.: histórias que (trans)formam. Belo Horizonte: PUC Minas.

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