A última flor da medicina

 

Antes de prosseguir, uma breve recapitulação do percurso até aqui.

O ponto de partida foi Hipócrates, como pai da medicina. Existem versões pré-hipocráticas: a egípcia, a persa, a indiana, a chinesa. A preferência pela européia tem motivo: pela primeira vez houve separação entre medicina e concepções mitológicas ou religiosas, o que foi designado como corte hipocrático.

O período pré-científico da medicina foi longo: mais de dois milênios. Se não foi na religião, se não foi na ciência, em que base se sustentou a prática médica nesse tempo? Na filosofia. Todo grande médico era também filósofo. Não obstante, o corpo de saber constituído era precário, inconsistente, e muito pouca coisa sobreviveu. Além disso, os procedimentos eram inócuos ou iatrogênicos. Os efeitos terapêuticos resultavam da autoridade ou do carisma do médico, influência que a psicanálise caracterizou sob o nome transferência.

A introdução na era científica teve início com o método clínico, de Pinel. Baseou-se na análise, de Condillac, que privilegiava o olhar. Pinel buscou em Condillac, também, concepções nominalistas, segundo as quais a armação do real seria similar à armação da linguagem. Para ele, a clínica se bastava.

Bichat também adotou o método da análise. Refutou, porém, as concepções nominalistas, a favor de concepções realistas, e procurou ancorar a clínica na anatomia patológica, criando o método anatomoclínico. O debate entre Pinel e Bichat terminou com vitória completa do método anatomoclínico, que se tornou hegemônico na medicina de bases científicas.

Além de principal artífice do método clínico, Pinel foi o fundador da psiquiatria. Não por acaso. Na alienação mental, bases anatomopatológicas não eram fundamentais. Por outro lado, o real da psiquiatria está constituído na linguagem. Desse modo, seu preconceito nominalista segundo o qual a armação do real era similar à da linguagem passava despercebido. Ao aplicar o método clínico ao estudo da alienação mental e ao defini-la como perturbação funcional do sistema nervoso central, Pinel criou hipótese funcionalista que dominou a psiquiatria por quatro décadas.

O corte veio com Bayle. A sua descoberta, a paralisia geral, era alienação mental finamente descrita e que apresentava substrato anatomopatológico. O funcionalismo pinel-esquiroliano foi posto em cheque.

Após a morte de Esquirol, Griesinger, o pai da psiquiatria alemã, apresentou hipótese anatomista radical, tomando como paradigma a paralisia geral de Bayle, e postulando a inserção da psiquiatria no método anatomoclínico da medicina. Toda a psiquiatria, a partir de então, adotou tal postulação organicista, que reinou absoluta até o início do século XX.

Não obstante, a paralisia geral revelou-se exceção, e não regra. Ou seja, a anatomia patológica nunca exerceu, para a psiquiatria, o papel fundamental que desempenhou para a medicina. A psiquiatria clássica mostrou-se essencialmente clínica, até o seu apogeu, com Kraepelin.

Agora, o tema proposto: a última flor da medicina.

No final do século XIX as bases científicas da medicina já estavam em fase de conclusão: ciência no sentido estabelecido a partir de Descartes, Galileu e Newton, tendo como paradigma a física-matemática. É célebre a afirmação de Galileu segundo a qual a natureza está escrita com signos matemáticos e regida por leis que é preciso desvendar.

A exigência de matematização que o galileismo coloca é algo tácito entre as ciências naturais, e nessa perspectiva foram desenvolvidas as bases científicas da medicina. Contexto em que impera a quantificação e a validação estatística, com exclusão da subjetividade do observador e do observado, para que possa emergir o conhecimento almejado. Evolução aos poucos transposta para a prática médica, que se tornou inteiramente outra prática.

O médico passa a fundar sua intervenção em seu conhecimento científico, abrindo mão ou deixando em plano secundário outro tipo de influência.

É exatamente o contrário do que ocorria no período pré-científico, quando o procedimento do médico era frequentemente inócuo ou iatrogênico e a terapêutica se efetivava por sua influência pessoal.

Em outras palavras, a entrada da medicina na era científica foi um corte em relação ao que havia antes. E nesse corte, o papel da transferência foi desprezado na intervenção terapêutica.

Um dos resultados da transformação: foram criadas condições epistemológicas para o surgimento da psicanálise.

 

Freud com Charcot

Freud constata: existem homens que transmitem um conhecimento que, rigorosamente falando, não possuem. Entre eles, Charcot [1].

É importante reconstruir a cena entre Freud e Charcot.

Freud tornou-se neuropsiquiatra no serviço de Meynert, em Viena, que adotava posição extremamente anatomista, ou organicista; uma psiquiatria sem psicologia. Nesse contexto, os limites entre neurologia e psiquiatria se esfumavam. Sua posição era mais radical, mas, toda a psiquiatria já era, desde a morte de Esquirol, visceralmente anatomista.

Freud dirige-se então a Paris, onde passa a frequentar o serviço de Charcot. Acontece, então, a célebre cena: Charcot, valendo-se de sugestões hipnóticas, faz aparecer ou desaparecer sintomas de pacientes histéricas.

Parece pouco, mas é muito. Na psiquiatria hegemônica na época, o aparecimento ou o desaparecimento de sintomas só conhecia uma possibilidade: estava na dependência estrita do que ocorria no cérebro dos pacientes. Freud descortinou, nas experiências de Charcot, um novo caminho: as vicissitudes dos sintomas decorrem da influência de um sujeito sobre outro sujeito. Há, também aqui, um corte: só que, desta vez, o que é priorizado é a ação terapêutica da transferência, ficando em plano secundário as bases cerebrais do acontecimento. Eis o alicerce ou a plataforma onde se ergue o edifício da psicanálise.

Do ponto de vista epistemológico, a psicanálise deriva, por espelhismo, do ingresso da medicina na era científica. A questão, porém, é mais ampla, e a cena com Charcot apenas um de seus capítulos.

 

Freud com Griesinger

Meynert foi aluno de Griesinger, autor do famoso “Tratado das Doenças Mentais” (1843).

Apesar de sua posição anatomista (“Devemos sempre ver antes de tudo nas doenças mentais uma afecção do cérebro”), Griesinger criou uma psicologia finíssima: devido à sua concepção psicofísica, admitia estar assim descrevendo o lado psíquico do evento cerebral. Freud buscou inspiração em seus escritos [2].

Tais hipóteses psicológicas constituem construção original, que se apoia em conquistas da neurologia e em teses que foi buscar em Herbart (filósofo que sucedeu a Kant na cadeira de filisofia de Koenigsberg e que tentou aplicar leis mecânicas e matemáticas aos fenômenos psíquicos).  O avanço neurológico mais importante foi a descoberta, por Hall, do arco reflexo medular, demonstrando que a atividade motora nem sempre está ligada à consciência.  De Herbart, Griesinger tomou três noções principais: uma concepção da consciência, uma concepção do eu e a concepção de recalque (Verdrängung) [3], conceitos que Freud incorporou. Além do termo inconsciente, que na psicanálise recebeu novo estatuto.

Uma publicação intitulada “Um fragmento da biblioteca de Freud” ressalta que o seu exemplar do “Tratado das Doenças Mentais” estava “cuidadosamente sublinhado a lápis” e que “é do maior interesse o acúmulo de marcas nas páginas em que Griesinger apresenta sua teoria do eu e sua concepção da metamorfose do eu” [4].

 

 Freud com Kraepelin

“A clínica fundamental é a psiquiátrica, inclusive para a psicanálise, uma herança dela, talvez pesada, da qual devamos nos desfazer” [5] .

A citação de Miller convida a pensar: em que sentido a clínica psicanalítica é herdeira da clínica psiquiátrica? Não há dúvida que uma resposta —talvez a principal — seja esta: sem a psiquiatria a psicanálise não construiria o conceito de estrutura clínica. Está aí a dívida de Freud com Kraepelin e com os clássicos da psiquiatria.

Com efeito, Freud se inspirou nas psicoses funcionais e em outros distúrbios “funcionais”: as neuroses (que, depois de Charcot e seus discípulos, ficou bem definida, com suas quatro formas clínicas principais: angústia, fobia, obsessão e histeria) e as perversões sexuais (que muitos autores prefeririam incluir no rol das personalidades psicopáticas).

Ou seja: psicoses, neuroses e perversões. Três categorias psiquiátricas que inspiraram as três estruturas clínicas da psicanálise. A clínica psicanalítica foi buscar na clínica psiquiátrica sua fundamentação “nosológica”. É importante ressaltar, todavia, que existe apropriação e ruptura. Das psicoses à psicose passa-se das categorias ao conceito, da fenomenologia à metapsicologia, da cena à Outra cena. A psicanálise torna-se herdeira da psiquiatria no mesmo movimento em que dela se desfaz [6].

 

Freud e o monismo epistemológico

Freud adotou a posição de um monismo epistemológico. Para ele não há, falando rigorosamente, ciência senão da natureza. Ora, se a psicanálise é uma ciência digna desse nome, então ela é ciência da natureza [7]. Quanto a esse aspecto, sua inspiração fundamental foi Haeckel, para quem monismo é “concepção unitária de toda a natureza”, que se baseia numa tese ôntica, que propõe “a unidade fundamental da natureza orgânica e inorgânica” e numa tese epistêmica, segundo a qual “todo o mundo cognoscível existe e se desenvolve segundo uma lei fundamental comum”. A partir daí vem a recusa a todos os sistemas dualistas e pluralistas [8].

Tão firme convicção científico-natural levou-o a um modelo físico-químico, a começar pelo próprio nome: psicanálise. Análise é o método de decomposição que leva aos elementos básicos. Outros termos são indicativos dessa influência: sublimação, condensação, deslocamento, fusão, resistência, mecanismo, investimento, energia livre, energia ligada, quantum, estase, inércia, constância. Esse cientificismo fisicalista teve uma implicação essencial: o determinismo, do qual Freud não se separará jamais.

Não se trata de fisicalismo absoluto, mas de concepção que prevê continuidade entre física e fisiologia e, num segundo plano, entre fisiologia e psicologia. Nessa trajetória, Freud recebeu a influência de vários autores, numa época de grande efervescência científica: Fechner (1801-1887), Helmholtz (1821-1894), Mach (1838-1916), entre outros.

A epistemologia freudiana pode ser organizada a partir da estrutura de sua metapsicologia. Qual é essa estrutura? Ele mesmo a define, sob os pontos de vista tópico, dinâmico e econômico. O que pode ser traduzido como: 1) Teoria dos lugares. 2) Teoria das forças. 3) Teoria da energia.[9] Enquanto teoria dos lugares a referência principal é a anatomia. Enquanto teoria das forças está sempre em jogo uma concepção física do aparelho psíquico. E enquanto teoria energética a inspiração que prevalece é a do modelo fechnero-helmoltziano.

O que se pode concluir daquilo que nos propõe Freud?

“Que a psicanálise, como forma de saber, operando no espaço do inacabamento, se realizará em sua morte, uma vez alcançado o limite de sua perfeição epistêmica, absorvido pelos outros saberes. Imaginemos —posto que esta imagem encontra-se incessantemente no horizonte da consciência epistêmica de Freud— as correlações anatômicas fixadas, as substâncias químicas descobertas, as medidas realizadas, tópica, dinâmica e econômica concluídas; fechado o campo, a psicanálise concluída como edifício metapsicológico se tornaria um ponto imaginário nos confins de uma anatomia, de uma física e de uma química acabadas. Sua morte e sua perfeição se conjugam, pois, em seu imaginário científico.”  (ASSOUN, 1983, p. 215) [10].

 

Retomando o fio da meada

O que foi dito até agora pretendeu mostrar várias coisas.

O ingresso da medicina no discurso científico ressaltou o corpo biológico e excluiu a dimensão da subjetividade. O corpo-máquina da ciência deixou de lado a questão do desejo e do gozo.

Tal evolução abriu campo para a psicanálise, que explorou o campo do sujeito sem considerar a sua pré-condição biológica.

A psicanálise freudiana, não obstante, considera-se uma ciência natural — tal como a biologia — e herdeira da tradição racionalista do iluminismo. Sua proposta epistemológica, todavia, é inteiramente original, sui generis: avança por outro método, até que, um dia, a ciência possa explorar todos os campos por um só caminho.

E a psiquiatria, nesse contexto, como fica?

 

Belo Horizonte, 10 de maio de 2016.

 

Bibliografia sugerida:

Leitura resumida:

Lacan, J. O lugar da psicanálise na medicina. In: Opção Lacaniana nº 32, dezembro 2001, p. 8-14. São Paulo: Edições Eólia.

Leitura avançada:

Assoun, P.-L. (1983) Introdução à Epistemologia Freudiana. Rio de Janeiro: Imago Editora.

 

 

NOTAS

Publicado no livro Psicanálise e Psiquiatria: Aproximações, CRV, 2017.

[1] Freud, S. (1974) História do Movimento Psicanalítico (1914), p. 22-23. ESB, Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago.

[2] Barreto, F. P. (1999) Homenagem a um velho psiquiatra. In: Reforma Psiquiátrica e Movimento Lacaniano, p. 126. Belo Horizonte: Itatiaia.

[3] Alexander, F. G. e Selesnick, S. T. (1968)  História da Psiquiatria, p. 208-209São Paulo: IBRASA.

[4] Bercherie, P. (1986) Los Fundamentos de la clínica.  Historia y estructura del saber psiquiátrico, p. 43. Buenos Aires: Manantial.

[5] Miller, J.-A. (1997) Psicanálise e Psiquiatria. In: Lacan elucidado, p. 125. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor.

[6] Barreto, F. P. (1999) As psicoses e os clássicos da psiquiatria. In: Reforma Psiquiátrica e Movimento Lacaniano, p. 120. Belo Horizonte: Itatiaia.

[7] Assoun, P.-L. (1983) Introdução à Epistemologia Freudiana, p. 50-1. Rio de Janeiro: Imago Editora.

[8] Assoun, P.-L. (1983), idem, p. 226.

[9] Assoun, P.-L. (1983), ibidem, p. 111.

[10] Assoun, P.-L. (1983),ibidem, p. 215.

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