Breve História da Psiquiatria Mineira

Breve História da Psiquiatria Mineira[1]

 

Primeira parte:  Tempo de exclusão

Durante os primeiros tempos das Minas Gerais, os alienados vagam pelas vias públicas ou são recluídos às cadeias. Segundo RONALDO SIMÕES COELHO, em 24 de janeiro de 1817 é internado o primeiro doente mental em nosso Estado, na Santa Casa de São João del Rei, no seu anexo para loucos. Cria-se ali nossa primeira unidade psiquiátrica em hospital geral, que funciona até 1902.[2]

Em 1903, em Barbacena, instala-se o Hospital de Assistência a Alienados, centralizando recursos que eram aplicados em várias Santas Casas. Em 1911, inaugura-se a Colônia em Barbacena, sob o princípio de que o alienado deve trabalhar. Entrementes, a superlotação hospitalar afoga todos os planos de um “trabalho terapêutico”.[3]

A solução encontrada é a criação de novo hospital psiquiátrico: em 1922, em Belo Horizonte, o Instituto de Neuropsiquiatria — mais tarde, Instituto Raul Soares. Chega a desfrutar do status de hospital modelo, para, em seguida, cair na rotina de superlotação e maus tratos. Em 1929, LOPES RODRIGUES, recém-nomeado Diretor, decide soltar os pacientes encarcerados e amarrados. O então Presidente Antônio Carlos Ribeiro de Andrada pergunta: — E os loucos perigosos? Como tem a coragem de soltá-los? — Minha coragem aí, Presidente, não é a de soltar os loucos; está sendo a de enfrentar os sãos  — responde o Diretor.[4]

Outros hospitais psiquiátricos públicos: o Hospital Psiquiátrico de Oliveira (1924), o Manicômio Judiciário de Barbacena (1929), o Hospital de Neuropsiquiatria Infantil (1947) e o Hospital Galba Veloso (1962).

 

QUADRO 1

Hospitais Psiquiátricos Públicos de MG

  • 1817 – Anexo para loucos da Santa Casa de São João del Rei
  • 1903 – Hospital de Assistência a Alienados, de Barbacena
  • 1911 – Hospital Colônia, de Barbacena
  • 1922 – Instituto de Neuropsiquiatria, de Belo Horizonte → Instituto Raul Soares
  • 1924 – Hospital Psiquiátrico de Oliveira
  • 1929 – Manicômio Judiciário, de Barbacena
  • 1947 – Hospital de Neuropsiquiatria Infantil, de Belo Horizonte
  • 1962 – Hospital Galba Veloso, de Belo Horizonte

 

Entram em cena os hospitais privados. Pacientes particulares —os contribuintes— já são atendidos no Hospital Colônia de Barbacena e no Raul Soares. Contudo, a primeira clínica privada é a Casa de Saúde Santa Clara, de Belo Horizonte, fundada em 1937. Em 1953 existem, em Minas, 16 clínicas particulares, embora a maior capacidade de internação continue por conta dos hospitais públicos, grandes manicômios. Segundo CLÓVIS DE FARIA ALVIM, tais clínicas desenvolvem atuação puramente comercial, estão precariamente instaladas e não têm vocação terapêutica.[5]

Na Ditadura Militar, a rede psiquiátrica privada é generosamente financiada pela Previdência Social. E ocorre terrível inchaço dessas instituições. A facilidade de internação leva as famílias a se desfazerem de seus membros mais problemáticos. Por outro lado, a internação psiquiátrica torna-se modo simples de fugir do trabalho e conseguir benefícios previdenciários, estratégia que enche os hospitais de alcoolistas. Há, desse modo, relações de trabalho corrompidas e relação espúria entre certos empresários da saúde e sistema previdenciário, o que fica conhecido como indústria da loucura. Em pouco tempo, a Previdência Social passa a gastar mais da metade de sua verba para a saúde somente com assistência psiquiátrica.

Segundo dados do próprio SUS-MG: em 1991, dos 8.087 pacientes psiquiátricos internados no Estado de Minas Gerais, 1.266 estavam em seis hospitais públicos e 6.861 em trinta hospitais privados, contratados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O eixo Belo Horizonte – Barbacena – Juiz de Fora, com 30% da população do Estado, absorvia 73% dos leitos.[6]

Resumindo: até então, a assistência psiquiátrica em Minas Gerais é totalmente centrada no hospital, com exclusão temporária ou definitiva dos pacientes. Os hospitais de crônicos contratados pelos órgãos previdenciários cabem bem na designação de “instituições totais”, proposta por Goffman.[7] Quanto aos hospitais de crônicos da rede pública, é preciso nova designação para caracterizar o que são. Proponho o termo “instituições finais”, numa alusão à “solução final” do nazismo, comparação várias vezes evocada.

Como se vê, a maior parte da história da psiquiatria mineira é a história de seus manicômios.  Uma história de segregação, brutalidade e mercantilismo, onde o interesse terapêutico só aparece em momentos efêmeros ou em iniciativas isoladas.[8]

 

Segunda parte: Período de transição

Malgrado quadro geral tão desolador, surge, na década de 1960, no Hospital Galba Veloso, experiência pioneira e fascinante. Pela primeira vez em nosso Estado, os psicofármacos modernos são utilizados em ampla escala, com a abolição dos métodos físicos de contenção (camisas de força, quartos fortes). Medida que favorece a adoção do open-door integral e a generalização de técnicas sociais de tratamento (as praxiterapias). Dinâmicas de grupo são realizadas regularmente e a influência das concepções psicanalíticas culmina com a implantação de uma comunidade terapêutica. Também pela primeira vez em nosso meio, profissionais e estagiários de outras disciplinas (enfermagem, psicologia, serviço social, terapêutica ocupacional) trabalham sistematicamente com pacientes psiquiátricos internados.  A formação e o aprimoramento teórico-clínico é impulsionado por um Centro de Estudos dinâmico.  E mais tarde, encerrando todo esse elenco de inovações, a criação da Residência de Psiquiatria.[9]

O grande artífice das inovações é o Diretor JORGE PAPROCKI, que conta com a colaboração de EUNICE RANGEL, na psicanálise, e de CÉLIO GARCIA, na psicologia social. Nos anos 1970, porém, o Hospital Galba Veloso é transformado em hospital previdenciário e a chama que havia sido acesa aparentemente se apaga.

É nesse cenário que ressoa, em nosso meio, a crítica antipsiquiátrica. Ressoa com certo estardalhaço, por dois motivos. O primeiro e de longe o mais importante, é a realidade brutal de nossos hospitais psiquiátricos. O segundo, a decisão dos psiquiatras defensores da reforma de levar as denúncias ao grande público. Com efeito, enquanto permanecem restritas aos meios profissionais, ou seja, ao meio psiquiátrico e ao meio médico, elas se mostram inteiramente inócuas. Há ali uma acomodação, segundo a qual todo aquele horror torna-se banal, fatalidade inevitável. Tolerância mórbida dos psiquiatras que se estende ao meio médico, em cujas faculdades os cursos de anatomia são abastecidos por generosa quota de cadáveres provenientes de Barbacena. O que, por sinal, mostra-se um comércio macabro e espúrio. Para disfarçar todo esse contexto, há belos dizeres em letras de bronze, escritos em latim, no salão de dissecação anatômica: Hic mors gaudet succurrere vitae (Aqui a morte se apraz de socorrer a vida).[10]

Em 1972, ano em que o Instituto Raul Soares completa 50 anos, FRANCISCO PAES BARRETO apresenta, no 2º Congresso Brasileiro de Psiquiatria, o trabalho “Crítica do Hospital Psiquiátrico”,[11] que o Prof. LUÍS CERQUEIRA contribui para divulgar amplamente. Mas, a virada decisiva vem em 1979. Culminando o trabalho de mais de um decênio, a Residência de Psiquiatria da FHEMIG programa o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, para apresentar e discutir suas teses.  Não restringe o debate aos profissionais da área; pelo contrário, pretende participação a mais ampla possível.

O êxito é grande.  O Congresso será em dezembro.  Desde agosto começam as denúncias e as publicações nos jornais. HIRAM FIRMINO publica no Estado de Minas, na íntegra o trabalho “Crítica do Hospital Psiquiátrico”. Provocado, EDUARDO LEVINDO COELHO, Secretário da Saúde, toma decisão histórica.

“Os nossos hospitais psiquiátricos estão à disposição da imprensa, do rádio e da televisão. Vocês podem entrar em qualquer um deles, até mesmo em Barbacena, e fotografar tudo o que virem. Podem fotografar de trás para a frente, de frente para trás, do jeito que quiserem. Nós não vamos esconder nada e muito menos preparar os doentes para visita. Se pensam que a nossa política é esconder a realidade do público, estão enganados. A tendência mundial, e há muito nós estamos lutando por isso, é de não se construir mais hospital especializado no país, tipo manicômio. O ideal seria que eles já nem existissem mais”.[12]

Vem a série de reportagens intitulada Nos Porões da Loucura, de HIRAM FIRMINO, além do filme Em Nome da Razão, de HELVÉCIO RATON.  Em dezembro, com as presenças de BASAGLIA e de CASTEL, realiza-se o Congresso, com renovação das denúncias e apresentação de propostas de reformulação da política de saúde mental.  Hoje, avaliando retrospectivamente, pode-se dizer que tem início ali a Reforma Psiquiátrica de Minas.

 

QUADRO 2

Período de Transição

 

HOSPITAL GALBA VELOSO (ANOS 1960)

INTRODUÇÃO DOS PSICOFÁRMACOS

ABOLIÇÃO DA CONTENÇÃO FÍSICA

OPEN DOOR INTEGRAL

PRAXITERAPIA

DINÂMICAS DE GRUPO

TRABALHO MULTIDISCIPLINAR

COMUNIDADE TERAPÊUTICA

CENTRO DE ESTUDOS

RESIDÊNCIA DE PSIQUIATRIA

 

 

III CONGRESSO MINEIRO DE PSIQUIATRIA (1979)

DENÚNCIAS DE PSIQUIATRAS À MÍDIA

VINDA DE BASAGLIA E CASTEL

ABERTURA DOS HOSPITAIS PÚBLICOS À IMPRENSA

REPORTAGENS OS PORÕES DA LOUCURA

FILME EM NOME DA RAZÃO

PROPOSTA DE REESTRUTURAÇÃO DOS HOSPITAIS PÚBLICOS

 

 

 

Terceira parte: Hora da reforma

Com efeito, em 1980, com o apoio do Secretário da Saúde e da Direção Geral da FHEMIG, o Superintendente Hospitalar JOSÉ RIBEIRO DE PAIVA FILHO instala o Projeto de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Pública, que se inicia no Instituto Raul Soares, e posteriormente se estende ao Hospital Galba Veloso, ao Centro Psicopedagógico (ex-Hospital de Neuropsiquiatria Infantil) e ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (ex-Hospital Colônia de Barbacena).  As transformações verificadas são tão impressionantes que, ao retornar a Barbacena em 1993, o jornalista, autor da célebre série de reportagens mencionada, publica outra: Os Jardins da Loucura.

A questão, porém, deixa de ser a mudança dos hospitais psiquiátricos. A partir de 1987, o movimento de saúde mental de Minas adota as teses do II Encontro Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, realizado em Bauru, que propõem uma sociedade sem manicômios.  Trata-se não somente da transformação do hospital psiquiátrico, mas de sua abolição, e da implantação do modelo da saúde mental: a rede de serviços substitutivos, com ambulatórios em centros de saúde, serviços de urgência, unidades psiquiátricas em hospitais gerais, centros de convivência, residências protegidas.

 

QUADRO 3

Reforma Psiquiátrica de Minas

 

ANOS 1980

REESTRUTURAÇÃO DOS HOSPITAIS PÚBLICOS

CRIAÇÃO DE AMBULATÓRIOS NOS CENTROS DE SAÚDE

DA REGIÃO METROPOLITANA

 

 

ANOS 1990

CRIAÇÃO DA REDE DE SERVIÇOS SUBSTITUTIVOS

DA SAÚDE MENTAL

APROVAÇÃO DA LEI Nº 11.802, A LEI CARLÃO

DESOSPITALIZAÇÃO DE PACIENTES PSIQUIÁTRICOS

 

 

 

O avanço em direção à rede conta, nos anos 1980, com a criação de serviços de saúde mental nos centros de saúde da região metropolitana. Os passos mais vigorosos, porém, ocorrem a partir dos anos 1990, quando a rede, enfim, torna-se realidade. Grande número de trabalhadores da saúde mental se dirige à cidade de Santos, que havia realizado sua reforma psiquiátrica, à procura de estágios nos quais, ao verificar e aprender no local, possam trazer subsídios a uma forma de trabalhar corajosa e inovadora. A experiência de Santos contribui muito para a nova etapa da reforma de Minas, sob a liderança do Secretário da Saúde de Belo Horizonte, CÉSAR RODRIGUES CAMPOS, e cujo marco inicial pode ser definido pela criação do CERSAM Barreiro, em 1993.[13]

A criação do Movimento da Luta Antimanicomial contribui para formalizar suas propostas, avançar na sua realização e implicar setores atuantes da sociedade. Sua melhor expressão clínica e teórica, em nosso meio, são trabalhos e textos de ANA MARTA LOBOSQUE. Um dos resultados é e o Projeto de Lei nº 11.802, ou Lei da Reforma Psiquiátrica de Minas, aprovada em dezembro de 1994, pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Assinada pelo Secretário da Saúde e sancionada pelo Governador em janeiro de 1995, é regulamentada em setembro de 2002.

 

QUADRO 4

População de Hospitais Psiquiátricos de MG

ANO  

HOSPITAIS PÚBLICOS

 

HOSPITAIS PRIVADOS TOTAL
1953  

5 hospitais

(Grande parte

dos pacientes)

 

16 hospitais

(Menor parte

dos pacientes)

21 hospitais
1991  

5 hospitais

1.266 pacientes

 

30 hospitais

6.861 pacientes

35 hospitais

8.087 pacientes

2005  

4 hospitais

700 pacientes

 

17 hospitais

2.513 pacientes

21 hospitais

3.213 pacientes

 

Com a evolução apontada, a diferença é nítida. Em 2005 existem, em nosso Estado, 3.213 pacientes psiquiátricos hospitalizados: 700 em hospitais públicos e 2.513 em hospitais privados (nas seguintes cidades: Alfenas, Barbacena, Belo Horizonte, Divinópolis, Ituiutaba, Juiz de Fora, Lavras, Leopoldina, Passos, São Sebastião do Paraíso e Uberaba). O eixo Belo Horizonte – Barbacena – Juiz de Fora é responsável por 67% das internações.[14]

É possível definir, em poucas palavras, o que caracteriza o movimento da reforma psiquiátrica de Minas. Seu laboratório é a Residência de Psiquiatria do Instituto Raul Soares. E seus ingredientes são a consideração e o entrecruzamento de três eixos básicos, a saber: a psiquiatria, a psicanálise e a dimensão sociopolítica. Complexa elaboração, num contexto onde têm audiência Pinel e Kraepelin, Freud e Lacan, Foucault e Basaglia.  Não há síntese ou composição: pelo contrário, trata-se de exercício teórico-prático tenso e difícil, com avanços e retrocessos, no qual se procura relevar o conceito de cidadania e uma clínica do sujeito.

O marco inaugural da reforma psiquiátrica de Minas, como visto, é o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, em 1979. Lá se vão 45 anos. Não se trata hoje de um sonho, mas de uma realidade. E o cenário é inteiramente outro.

A reforma muda não apenas a psiquiatria, mas a nossa cultura. Abole, sim, os campos de concentração psiquiátricos: só isso justifica sua existência. O que resta deles? Como documentos históricos, três obras, além das que já foram citadas, merecem menção. O Museu da Loucura, que hoje é atração turística de Barbacena. A coletânea “(colônia) uma tragédia silenciosa” (2008), com vários textos e com fotos de LUIZ ALFREDO, em edição organizada por JAIRO FURTADO TOLEDO, que é também o maior artífice das transformações do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena. Finalmente, o livro “Holocausto Brasileiro” (2013), da jornalista DANIELA ARBEX, e os documentários dele derivados.

A reforma, além disso, embora não tenha acabado inteiramente com os manicômios, seu objetivo máximo, deixa-os na antecâmara da morte, no imaginário social.

Seu maior mérito, porém, foi este: a consciência social de que todos têm direito a cuidados de saúde mental na sua própria cidade ou no seu próprio bairro.

 

Quarta parte: Momento de reflexão

60 anos de convivência com a psiquiatria mineira! Algo que  permite ao autor desse breve histórico certa satisfação com a evolução apresentada, o que não impede uma crítica aos tempos atuais.

A avaliação retrospectiva mostra a particularidade da nossa reforma psiquiátrica. Ela recebe apoio maciço de, pelo menos, metade dos psiquiatras mineiros: os que elegem, para a Associação Mineira de Psiquiatria, a chapa QUERERES, em 1988, e depois a chapa CONEXÕES, em 1996, em inesquecíveis eleições. Outro ponto merece destaque. Enquanto o significante-mestre da reforma psiquiátrica tem sido o termo cidadania, ou seja, o louco como cidadão, no caso da reforma de Minas existe, não apenas um, mas dois significantes-mestres: cidadania e sujeito, ou seja, o louco como cidadão e sujeito.

Nas suas raízes e na sua germinação nossa reforma conta, entre os trabalhadores da saúde mental, com psiquiatras e com psicanalistas. É exatamente o que permite, tanto na teoria como na prática, a consideração e o entrecruzamento dos três eixos básicos mencionados: a psiquiatria, a psicanálise e a dimensão sociopolítica. Quadro que prevalece nos primeiros tempos da reforma psiquiátrica mineira, mas que não se mantém, por diferentes razões.

O primeiro fator é a crescente e radical biologização da psiquiatria, que inclui vários aspectos. A redução da disciplina a uma especialidade médica, com exclusão da dimensão subjetiva e sua consequente neurologização. A adoção do DSM como classificação, inteiramente subordinada a uma clínica da medicação, que passa a ser o enfoque terapêutico com supremacia quase absoluta. Finalmente, a adesão a uma abordagem que visa à normalidade e à adaptação social, numa perspectiva que se declara apolítica e ateórica, e que tem como aliada natural a terapia cognitivo-comportamental (TCC).

As coisas também mudam do lado dos defensores da reforma psiquiátrica. O cerne da questão é a ênfase nos determinantes sociopolíticos no campo da saúde mental, ou o superdimensionamento dos fatores sociopolíticos no trato com a loucura.

O pecado de nossa reforma é o desprezo pela formação e pela transmissão. Não há, durante muito tempo, o cuidado de formar os profissionais que a ela se destinam, ou de criar um lugar onde seus problemas sejam pensados e suas soluções elaboradas. A formação chega a ser, em certo momento, menosprezada. Quanto mais despreparado o profissional, em termos formais, melhor. Existe o alcance desse argumento, que não é desprezível. Existe, também, seu limite, que é terrível.

Desligada do esforço de preparar seus profissionais e de pensar sua existência, a reforma mergulha em ativismo febril, sob perspectiva de que a questão crucial da loucura se restringe a termos sociopolíticos. Orientação que desacredita a clínica e os estudos que tentam abordar a loucura e suas formas de tratamento. A rede funciona movida não se sabe por quais princípios.[15]

É possível conjecturar: a polarização que divide o Brasil alcança o campo da saúde mental. De um lado, a abordagem biologicista e comportamentista, que nega seu envolvimento sociopolítico. De outro lado, a reforma psiquiátrica e o movimento antimanicomial, com sua abordagem primariamente sociopolítica. Com o acirramento dos ânimos, os psiquiatras se afastam dos serviços públicos, dedicando-se mais à clínica privada e aos planos de saúde.

Apesar do impasse apontado e da precariedade do funcionamento dos serviços de saúde mental, é possível dizer, com segurança, que a reforma psiquiátrica não corre perigo de retrocesso. A razão da assertiva é de ordem estrutural. O manicômio é uma estrutura centralizada. Já a reforma psiquiátrica tem estrutura de rede, o que, uma vez alcançado, torna-se um avanço irreversível. As tentativas de retrocesso revelam-se pontuais e não chegam a afetar o essencial da evolução. Aprimorar os serviços, sim:  para garantir a qualidade da atenção aos usuários, e não para impedir uma volta ao passado.

Com efeito, é possível constatar: na região metropolitana de Belo Horizonte existem, hoje, somente dois hospitais psiquiátricos (um público e um privado, ambos de médio porte). Há 50 anos era diferente: três hospitais psiquiátricos públicos (dois de grande porte) e oito privados (sendo cinco de grande porte). O que é isso? A metrópole cresce exponencialmente… e os loucos chegam ao fim?

Não. A resposta mais simples aponta dois grandes fatores. O primeiro é que, em vez de atenção centralizada, existe verdadeira malha que chega ao bairro do usuário. O segundo fator é a difusão de novos métodos de tratamento, como atenção individualizada, medicamentos psicotrópicos e meios socioterápicos. Os poucos casos que requerem internação são resolvidos em pequenas unidades de atendimento.

Não obstante, a segregação do louco é algo complexo, que deve ser examinada de forma bilateral. É importante a consideração da posição do meio social e também da posição do próprio louco. Sim, ele próprio tende a se isolar, até mesmo dentro de sua casa, devido a aspectos de sua linguagem, ou então a hábitos de vida que elege. A reação do meio social a isso pode atenuar ou agravar o problema. Seja como for, cabe afirmar: a tendência à segregação do louco não é de ordem circunstancial, é de ordem estrutural.

Ou seja, a segregação não é algo que se resolve com a derrubada dos muros do manicômio. Existe segregação sem muros. Muito mais ardilosa, muito mais cruel. Algo às vezes invisível, da ordem da discriminação. Exemplos extremos e visíveis são a população de rua e as cracolândias. Para falar de modo claro: superar a segregação exige empenho permanente.[16]

Na verdade, dizer que a segregação é estrutural implica chegar ao âmago, ou aos aspectos mais ocultos da condição humana. O que quer dizer isso? Quer dizer que, em última análise, e no mais íntimo de cada um, todos nós somos narcisistas, todos nós somos homofóbicos (inclusive os gays), todos nós somos machistas (inclusive as mulheres), todos nós somos racistas (inclusive os negros), todos nós somos xenofóbicos, todos nós excluímos os loucos (inclusive os próprios loucos fazem isso). Quem não é homofóbico, que não é machista, quem não é racista, quem não é xenofóbico e quem não exclui os loucos é porque operou uma subversão interna, uma transformação íntima, capaz de resultar em alguém diferente do que era antes. Eis a questão. Eis o desafio! É possível operar tal metamorfose? Ora, não é tarefa simples, mas temos provas suficientes dessa possibilidade. Aqui, bem perto de onde estamos agora, existiu um campo de extermínio que, durante longo tempo, dizimou loucos e outros enjeitados sociais. É com orgulho que nós podemos, hoje, falar disso como um tempo definitivamente passado.

Encerro com palavras de JOSÉ RIBEIRO DE PAIVA FILHO: em Barbacena, houve “A vitória dos beija-flores sobre os urubus”.[17]

 

 

[1] XXVIII Congresso Brasileiro de História da Medicina e IX Congresso Mineiro de História da Medicina. Barbacena, 19 a 21 de setembro de 2024.

[2] Coelho RS. Primeira unidade psiquiátrica em hospital geral no Brasil. Arq coord saúde ment estado sao paulo. 1972; vol 38: 50

[3] Magro Filho JB. A  tradição da loucura. Belo Horizonte: Coopmed Editora/Editora UFMG; 1992. 22-24.

[4] Idem, 68.

[5] Alvim CF. Assistência ao Doente Mental. Rev Med Minas Gerais. 1956; vol 7: 119-153.

[6] (SUS-MG).  Belo Horizonte, 1993. Relatório da Auditoria Especial de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde de Minas Gerais

[7] Goffman E. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva; 1974.

[8] Barreto, FPB. Notas sobre a História da Psiquiatria Mineira. In: O Bem-Estar na Civilização: 221. Curitiba: Editora CRV, 2016.

[9] Barreto FPB Op. Cit: 221.

[10] Idem, 222.

[11] Barreto FPB Reforma Psiquiátrica e Movimento Lacaniano: 43-63. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.

[12] Jornal “Estado de Minas”, 13 de setembro de 1979.

[13] Campos CR. Cidadania, Sujeito, CERSAM e Manicômios.  Rev Metipola. Belo Horizonte: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.1998; 4-11.

[14] Deliberação CIB-SUS/MG nº 221, de 10 de novembro de 2005. Governo do Estado de Minas Gerais, Secretaria de Estado da Saúde.

[15] Barreto FPB Notas… Op. Cit.:226.

[16] Barreto FP O fim dos loucos? In: Contos e crônicas — Colhidos ou recolhidos, 131. Editora Mourasa, 2024.

[17] Toledo, JF (colônia) uma tragédia silenciosa, 59. Autêntica Editora, 2008.

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