Por que este artigo no Blog?
Texto da palestra de abertura do COLÓQUIO DE PSICANÁLISE APLICADA À PSIQUIATRIA – Como a psicanálise trata?, realizado em Belo Horizonte, promovido pela Residência de Psiquiatria do Instituto Raul Soares, pelo Centro de Estudos Galba Velloso e pela Escola Brasileira de Psicanálise – Minas Gerais, nos dias 17 e 18 de março de 2017.
Como a psiquiatria trata e como a psicanálise trata
Em primeiro lugar, agradeço ao Sérgio de Campos não só pelo convite como também pela amável proposição de ler meu escrito, já que estou impossibilitado de comparecer por problemas de saúde.
Para dizer, em poucas palavras, Como a psicanálise trata, existem vários caminhos. Um deles é comparar o tratamento psicanalítico com o tratamento psiquiátrico, já que o Colóquio é dedicado a psiquiatras. Não seria um despropósito, já que tenho pouco tempo, falar de dois tratamentos em vez de um só? Paradoxalmente, no entanto, apresentar um tema menos conhecido a partir de um tema bem conhecido facilita muito as coisas. É o que poderá ficar demonstrado.
A via da psicanálise é a via do significante. Segundo Miller, uma questão atravessa o ensino de Lacan. Como é possível a psicanálise, que opera no campo da linguagem a partir da palavra, obter efeitos sobre o que é uma rejeição desse campo da linguagem? Dito de outro modo: “Como operar, a partir do simbólico, sobre o real?”.
Questão particularmente apropriada quando se considera o tratamento do psicótico. Na psicose o simbólico está comprometido, desfalcado. Na psicose desencadeada, ou nas situações de crise, a precariedade do simbólico torna-se extrema, praticamente inviabilizando o tratamento pela via da palavra.
Como proceder nessas circunstâncias?
Não há resposta única para tal pergunta. E há uma constatação: na prática clínica, o psicanalista frequentemente recorre a uma associação com o tratamento psiquiátrico na direção de tais casos.
Recurso tão comum vê-se, não obstante, pouco formalizado. A aproximação de dois discursos para o tratamento de um mesmo sujeito não é algo simples e sem problemas. Pelo contrário, é algo que requer, de lado a lado, certa afinação de propósitos.
Como aproximar a psicanálise da psiquiatria se elas se regem por diferentes políticas e por diferentes éticas?
O presente trabalho tem três objetivos.
1. Expor, em linhas gerais, mas precisas, qual é a política e a ética da psiquiatria.
2. Fazer o mesmo em relação à política e à ética da psicanálise.
3. Definir em que condições políticas e éticas é possível uma aproximação dos dois discursos.
Política da psiquiatria
A política da psiquiatria é a eliminação do sintoma. É possível verificá-lo de maneira muito clara por meio do exame dos ensaios clínicos com psicofármacos.
Considere-se, por exemplo, um ensaio clínico para avaliar a eficácia e os efeitos colaterais de um novo antidepressivo. Os sintomas devem ser quantificados pormenorizadamente. Os pacientes, antes de serem distribuídos aleatoriamente entre os grupos (um grupo que recebe o antidepressivo estudado, um que recebe um antidepressivo bem conhecido e um que recebe placebo), devem ser avaliados de acordo com uma escala, tal como a Escala de Hamilton para Depressão. Após a randomização, os comprimidos são administrados por tempo considerado satisfatório e, neste período, as outras medidas terapêuticas são padronizadas. Durante e ao final do ensaio clínico, realizam-se novas avaliações pela mesma Escala, obedecendo ao método do duplo cego. Além dos sintomas, a avaliação inclui exames complementares e questionários sobre os efeitos colaterais. No final do ensaio, os resultados devem ser submetidos a análise estatística, para o estudo da evolução comparada dos grupos.
O que está sendo medido, portanto, é a eficácia, entendida como redução ou eliminação dos sintomas, e os efeitos colaterais de um novo antidepressivo, comparado a um antidepressivo já bem conhecido e a um placebo. O placebo é uma substância quimicamente inerte ou inócua. Um problema nos ensaios clínicos para testar medicamentos é a bem documentada tendência dos indivíduos a dar resposta favorável a qualquer terapia, sem considerar a eficácia fisiológica do que eles recebem. Este fenômeno é referido como efeito placebo. Se um estudo não usa o controle-placebo, é impossível dizer se resultados subjetivos são devidos ao atual ensaio de tratamento, à atenção extra que os participantes recebem, ou simplesmente à sua crença de que o tratamento ajudará.
Qualquer que seja o resultado de um ensaio clínico, ele deixa fixado um ideal de eficácia: o de eliminar todos os sintomas sem causar nenhum efeito colateral .
Ética da psiquiatria
Historicamente, o nascimento da psiquiatria está fortemente ligado a uma perspectiva moralista. Foucault afirma que, ao definir o estatuto da loucura simultaneamente como doença e erro (no sentido moral), em vez de libertar, Pinel teria fechado o cerco em torno do louco com um rígido discurso médico e moralista . Prova disso seria a ênfase dada às causas morais e ao tratamento moral.
A importância atribuída aos aspectos morais teve seu ápice na obra de Morel, com sua célebre contribuição: a teoria da degenerescência. Apresento-a de forma sucinta: a doença mental seria o resultado de uma degradação moral que se transmitiria, por hereditariedade genética e de forma progressiva, de geração a geração. A teoria da degeneração dominou a psiquiatria até o início do século XX.
A partir desse momento, uma nova concepção irá nortear a psiquiatria: a normalidade cultural. Os sintomas, as síndromes, as doenças, os transtornos serão definidos como desvios da normalidade cultural, que tem base estatística.
Tal critério define não apenas o que deve ser tratado como o objetivo do tratamento: o retorno à normalidade cultural. Razão pela qual alguns ensaios clínicos incluem, além de escala de avaliação, escala de adaptação social (EAS).
Diante de tal caracterização, Colette Soler vale-se de outros termos para a seguinte definição: “O sintoma é precisamente o que faz com que cada um não consiga fazer absolutamente o que está prescrito pelo discurso de seu tempo” .
Por outro lado, Miller assinala: ainda que a norma tenha base estatística, adaptar-se a ela, ou fazer dela a lei, é uma decisão política .
É importante ainda considerar que, apesar da evolução, tanto a norma moral como a norma social se originam no mesmo contexto e que apontam para valores universais. A ideia de norma social é correlata da ideia de norma moral. Constatação que faz ressoar a assertiva segundo a qual o tratamento moral tornou-se o núcleo fundamental da terapêutica psiquiátrica .
A ética da psiquiatria, em resumo, é uma ética do universal.
Política da psicanálise
A política da psicanálise é a orientação pelo real do sintoma. Salta à vista a divergência radical com a política da psiquiatria.
Com efeito, numa apreciação sucinta, considerando-se apenas o início e o final da experiência psicanalítica, pode-se averiguar que o sofrimento do sintoma marca o começo, e que a identificação com o sintoma marca o fim da análise.
Para tornar as questões mais tangíveis, serão abordados brevemente alguns aspectos do tratamento do psicótico.
Para a psiquiatria, nesses casos, o saber fica do lado do psiquiatra. Para a psicanálise, fica do lado do psicótico. Isso quer dizer, entre outras coisas, que as soluções do sujeito psicótico são autoconstruidas.
Orientação que precocemente se apresenta na psicanálise. Desde o caso de Schreber, conhece-se a afirmação categórica: “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” .
Por que motivo é tão grande a dificuldade de admitir o delírio do psicótico como solução, e não apenas como problema? A razão principal é que se trata de um delírio desviante. Quando se considera os sistemas religiosos, políticos e filosóficos, que, rigorosamente falando, são também construções delirantes, admite-se com facilidade que eles tenham função apaziguadora, não apenas de indivíduos, como até mesmo de coletividades. Socialmente modelados, a dificuldade no caso é admiti-los como delírios.
Outro exemplo são as passagens ao ato dos psicóticos. É claro que muitas vezes têm conseqüências destrutivas, para o próprio sujeito ou para outros. Mas não se deve desconhecer sua potencialidade estabilizadora, tantas vezes evidenciada em variados exemplos.
Finalmente, o mais importante: o sintoma. O objetivo do tratamento psicanalítico não é sua abolição, mas sua transmutação, até que se encontre um sintoma com dupla função: representar o sujeito e servi-lo como um modo de gozar de seu corpo e de seu inconsciente. O paradigma é Joyce: foi com ele que Lacan aprendeu.
A ética da psicanálise
Para situar logo de início o aspecto crucial, pode-se dizer que, enquanto a psiquiatria busca uma adaptação do indivíduo à norma social, a psicanálise busca um acordo do sujeito consigo mesmo.
A ética da psiquiatria, fundada no universal, visa à normalização, à conformidade, à homogeneização, e as diferenças somente são consideradas quando isso facilita o resultado almejado.
A ética da psicanálise, por seu turno, está fundada na singularidade da relação do sujeito com seu desejo e seu gozo, o que não implica, necessária ou imediatamente, em laço social.
Em outros termos, a ética da psiquiatria é da ordem do para todos, enquanto que a ética da psicanálise é da ordem do não-todo.
Para a psiquiatria, a validação obedece ao método estatístico, que confere estatuto à norma. Para a psicanálise, a validação se faz pela estrutura lógica, que confere estatuto ao paradigma.
Discurso psicanalítico associado ao discurso psiquiátrico
Como, no tratamento do psicótico, associar o discurso psicanalítico ao discurso psiquiátrico, se eles se regem por políticas e éticas tão antagônicas?
Por tudo o que foi dito, a pergunta tem inteira procedência, e é preciso que seja levada em conta pelo psicanalista e pelo psiquiatra que se associam na proposta.
A associação dos dois discursos tem uma premissa. É necessário que o psiquiatra ponha entre parêntesis, ou ponha em suspenso a política de abolição dos sintomas e a ética da conformidade.
No lugar da eliminação dos sintomas, sua intervenção deve limitar certas passagens ao ato e moderar o gozo. E sua postura deve estar aberta a uma ética da singularidade.
São princípios mínimos e imprescindíveis ao trabalho em questão, mas cujos fundamentos necessitam de uma nova exposição.