Contos e Crônicas colhidos ou recolhidos

Sumário

 

Introdução

Fragmentos

 

Primeira parte:  Histórias do Gandarela

  1. A pepita de ouro
  2. A caverna do diabo
  3. Vida de tropeiro
  4. O fantasma
  5. Jorge e Esmeralda
  6. A eremita do Gandarela
  7. História
  8. O filósofo do Cocho d’Água
  9. Roda de prosa
  10. Capela
  11. Santo Agostinho

 

Segunda parte: Família, amigos

Meu pai

O inventor da pólvora

Contestação em Carangola

Política e psicanálise

In memoriam: César Rodrigues Campos

Quarenta anos esta tarde

Confissões

A minha primeira amiga

Casamento

Oração aos velhos

 

Terceira parte: Psicanálise, Psiquiatria, Saúde mental

O Congresso

Crônicas do Hospital Santos Olhos

Prelúdio

  1. Uma Questão de Portas
  2. Um Hospício Muito Louco
  3. O Plantão
  4. Para Não Dizer Que Só Falei de Flores
  5. A Dinâmica de Grupo
  6. Borborema, Meu Amor
  7. E Agora, José?

 

A louca da minha rua

A loucura dos normais

Os saudosos da indústria da loucura

O fim dos loucos?

Carta de amor à Psicanálise

 

Quarta parte: Política

Parábolas do elefante branco

Esquerda ou direita?

  1. Introdução
  2. O que é esquerda, o que é ser esquerdista?
  3. O que é direita, o que é ser direitista?
  4. O que é capitalismo?
  5. O que é democracia?
  6. O que é socialismo?
  7. A China é um país comunista?
  8. O marxismo é uma religião secular
  9. O que é ser esquerdista, hoje?
  10. O que é ser direitista, hoje?
  11. Nem direita, nem esquerda
  12. Capitalismo e democracia

 

Seis reflexões

 

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A loucura dos normais

 

“Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre… …Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.”

Trata-se de trecho de conto de Guimarães Rosa, em que Soroco embarca sua mãe e sua filha, loucas, numa viagem sem volta para Barbacena. Escolho essa bela estória como marco literário dos cem anos do Centro Hospitalar Psiquiátrico.

Sobre a loucura, não nos iludamos. Já foi dito que ela é festa, que é mistério, que é invenção, que é rigor… mas ela é, também,  sofrimento atroz. Para o louco, para a família. Ali, onde está o enigma da loucura, o manancial de uma ânsia criadora pode dar-se a ver, assim como a irrupção de uma turbulência que corrói a carne. Torna-se difícil, então, a conciliação do ser amado com o ser odiado do louco. Foi o que aconteceu, no conto que estou cotejando.

“O que os outros se diziam: que Soroco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Soroco agüentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências, de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam reunir com as duas, em hospícios.”

O padecer que a loucura impõe faz, com o tempo, o amor cansar e a paciência minguar. Quando o socorro que o Governo dá é um carro especial e vagas no hospício, qual o resultado? Reforça-se, assim, o ressentimento contra o louco, o ímpeto de ver-se livre dele. Para longe… para sempre… numa viagem sem volta… são metáforas poéticas para a morte, pois essa, como o sol, não pode ser olhada de frente.

O que ocorreu durante tantos e tantos anos no Hospital Colônia de Barbacena é página de nossa história que deve ser lembrada, por pelo menos dois motivos sérios. Primeiro: foi um crime que uma maioria praticou contra uma minoria. Segundo: foi um crime que uma maioria cometeu contra si própria. O conto de Guimarães Rosa mostra isso de maneira feliz. O que a filha e a mãe de Soroco fizeram, na hora da despedida?

“A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo —um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.”

Não devemos desconhecer o sofrimento da loucura, mas não devemos desconhecer, sobretudo, que a loucura não é só sofrimento. E, se é verdade que as famílias se cansam de seus loucos, é verdade, também, que as famílias amam seus loucos. É nesse amor —e não no ódio— que todo tratamento e que toda ajuda genuína deve se basear. Antes de ser científico, é um princípio ético. A exclusão é violência, não apenas contra o louco;  é violência que perpetramos contra o nosso amor. Depois que sua mãe e sua filha partiram, o que aconteceu com Soroco e com as pessoas que o acompanhavam?

“Num rompido —ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si— e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado… …E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Soroco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Soroco, e canta que cantando, atrás dele, os mais detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.”

Magnífica alegoria para a dor da perda: o amor, ferido, tenta compensar o dano por meio da identificação com o objeto perdido.

Bela estória, sim; no entanto, nunca me conformei com o seu fim. De certo modo, durante toda a minha vida profissional lutei para que ela tivesse outro desfecho. No início, éramos poucas vozes, e fomos comparados ao Quixote contra o moinho de vento. Aos poucos, o movimento foi crescendo, tomando corpo, alcançando força política, ganhando consistência teórica e apresentando propostas efetivas de transformação. Hoje, sabemos que ainda falta muito, mas, quando verificamos o caminho percorrido, sentimos imenso orgulho. Um alento que revitaliza nossa esperança e nos leva a continuar o trabalho, visando à realização completa do nosso sonho.

Qual é o sonho? Existem várias maneiras de enunciá-lo. Apresentarei uma delas. Minha escolha reflete minha emoção por ter sido convidado para a palestra de abertura do Seminário 100 anos do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena.

O sonho é simples. A estória de Soroco teria outro fim. Como, por razões óbvias, isso não é possível, a mudança seria feita mediante uma carta que lhe seria endereçada. A carta, sem dúvida alguma, não teria o brilho literário do autor do conto, mas não poderia ser mais profundamente sentida.

CARTA A SOROCO

Meu querido Soroco,

Esteja onde estiver, quero que ouça o que tenho a lhe dizer. Visitei, hoje, o lugar onde morreu sua mãe, onde morreu sua filha, onde morreram as mães, os pais, os filhos e os irmãos de um incontável número de pessoas.

Sabe o que encontrei lá? Um CAPS. Um hospital regional de clínica médica e cirúrgica. Um centro social urbano. Uma escola. Um centro de convivência. Um bairro popular. Uma área de preservação ecológica. Uma biblioteca pública. E outras construções que fazem parte da paisagem da cidade, atualmente conhecida como a Cidade das Rosas.

Ali, onde outrora ficava a Fazenda da Caveira, de Joaquim Silvério dos Reis, e depois o Hospital Colônia de Barbacena, era considerado um lugar maldito. Ao que tudo indica, porém, a misericórdia dos céus mudou a sua sina.

Antevejo a sua pergunta. O que está acontecendo, agora, com  pessoas como a sua mãe e a sua filha? Tentarei resumir, numa única frase, longa história. Hoje, o Governo paga um carro para levar o socorro até elas. A idéia é simples, mas foi necessária longa batalha para mudar, sobretudo, os corações e as mentes.

Se fosse hoje, Soroco, o seu sofrimento não acabaria, pois já sabemos que viver é negócio muito perigoso, mas, com certeza, a estória seria outra. O único problema é que o Guimarães Rosa não teria escrito conto tão belo —o que é o de menos, pois nunca falta tema para prosa boa.

Ah! Perdoe-me… já ia me esquecendo —com essa memória que começa a me desfalcar— de um fato importante. Do que havia do antigo hospital, resta apenas um edifício imponente, que é a principal atração turística da cidade. Chama-se Museu da Loucura. Está aí exatamente para não nos deixar esquecer, para registrar uma época. É um templo dedicado à loucura. Não à loucura de pessoas como sua mãe e sua filha, mas à nossa loucura, Soroco, à loucura dos chamados normais. 

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