Elogio a Jacques-Alain Miller

 

Jacques-Alain Miller é Jacques Lacan elucidado. Definição concisa e abrangente, mas que deixa de fora aspectos importantes. Um pequeno texto pode tentar, com precisão cirúrgica, incluir o que é fundamental.

Serão delineados três tópicos.

 

  1. A reformulação lógica.

Miller tem influência decisiva sobre o próprio curso do ensino de Lacan. Em 1964, seu texto “A sutura — Elementos da lógica dos significante” aproxima Lacan dos iniciadores da lógica-matemática contemporânea. O resultado é a passagem de uma teoria do significante para a lógica do significante, no que fica conhecido como reformulação lógica de seu ensino.

 

  1. A elucidação

Em “Televisão”, Lacan refere-se a Miller, ao afirmar: “Celui qui m’interroge sait aussi me lire”. A decisão de confiar-lhe o estabelecimento dos seminários confere estatuto de coautoria. Além desse trabalho, os cursos e escritos de Miller contribuem para elucidar o legado.

O estilo lacaniano é hermético, enigmático, para muitos ilegível. O estilo mata o homem. Para a maioria, é necessário o recurso a seus leitores, a seus epistemólogos. O principal é Jacques-Alain Miller. Outros exemplos: Jean Claude Milner, Colette Soler.

Não mais se pode ler Lacan sem Miller. O que seria do legado sem a elucidação? Não é difícil entrever. Perderia muito em difusão, em transmissão, seria diminuto o lugar que lhe restaria.

E se, nesse campo, há grande dívida de Miller a Lacan, cabe agora a pergunta: a dívida de Lacan a Miller não estaria também grande?

 

  1. O real da psicanálise

Miller, além disso, acrescenta algo de seu em vários momentos, e em vários aspectos.

Qual sua principal formalização?

No futuro, será lembrado por sua concepção do real da psicanálise, à luz do último ensino de Jacques Lacan.

 

São três argumentos que compõem um elogio a Jacques-Alain Miller. Além de razões epistêmicas, motivos pessoais para tanto. Contudo, assim como uma biografia perde muito, quando se torna uma hagiografia, um elogio converte-se em apologia, quando carece de crítica. A crítica vem agora.

Também em três tópicos.

 

  1. O CPCT.

Qual é, resumidamente, a proposta do CPCT? Uma psicanálise rápida, gratuita e que cura. Abraçada com pressa e paixão pelo Campo Freudiano.

Como se sabe, Freud aponta certas características do tratamento psicanalítico. É demorado. É caro. E nem sempre cura (“A cura, quando vem, é por acréscimo”). Ainda assim, prevê tratamentos custeados pelo Estado para atender às camadas pobres da população, tratamentos cujos “ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa”. É o que mais adiante será denominado psicanálise aplicada à terapêutica.

A proposta do CPCT vem associada a excelente livro de Miller sobre efeitos terapêuticos rápidos e teoria dos ciclos, instrumentos que poderiam enriquecer a psicanálise aplicada à terapêutica. No entanto, a ideia é outra, e o plano de cura gratuita em 16 sessões não sai do âmbito da miragem.

 

  1. O real sem lei

A grande contribuição original de Miller, como foi dito, é sua concepção do real da psicanálise, a partir do último Lacan. Ele comete ali, no entanto, um lapso. Opõe o real da psicanálise, que seria um real sem lei (onde há efeito sem causa, ou casualidade) ao real da ciência, onde prevalece a causalidade (não há efeito sem causa).

Passa-lhe desapercebido que, desde 1900, quando Max Planck lança a teoria dos quanta, a mecânica quântica formaliza um real sem lei, onde, entre outras coisas, vigora a casualidade, ou seja, o efeito sem causa. Para refrescar a memória, é o célebre debate entre Einstein, segundo o qual Deus não joga dados, e Böhr, que garante o contrário: Deus, sim, joga dados.

Em síntese: existe um real sem lei da ciência. O lapso de Miller, entretanto, é colateral e não afeta o fundamental de sua contribuição.

 

  1. A Escola de Lacan

A Escola de Lacan é uma concepção milleriana, uma tentativa de solucionar o vácuo criado pela dissolução, levada a termo por Lacan no fim da vida, da Escola Freudiana de Paris.

Qual seu fundamento? Três dispositivos: a permutação, o cartel e, principalmente, o passe. Com isso, Miller visa à transmissão da psicanálise e à redução do imaginário de grupo que assombra a instituição, e que pode produzir o amálgama de seus membros num só bloco. Quanto ao último aspecto, a Escola seria, numa perspectiva modesta, preponderância do simbólico, ainda que recalcitrante. Proposição promissora.

Qual o resultado?

A Associação Mundial de Psicanálise é um conjunto de Escolas, espalhadas por vários países. Ao examinar sua constituição, é possível verificar o que predomina. O Quadro abaixo, inspirado em formulações de Miller, tem função de balizador. A pergunta, então, é a seguinte: o regime que vigora nas Escolas está inserido na lógica do todo ou na lógica do não-todo?  A última possibilidade é necessária para a sobrevivência do discurso analítico.

 

 

LÓGICA DO TODO

 

LÓGICA DO NÃO-TODO

Conjunto fechado

Conjunto aberto

Verticalidade

Horizontalidade

Somos todos Um

Somos muitos excepcionais

Completude com inconsistência

Consistência com incompletude

Hegemonia do imaginário

Hegemonia do simbólico

Obscenidade

Outra Cena

Homossexualismo (amor por

um igual), incesto

Heterossexualismo (amor por

uma mulher), exogamia

Prevalência do gozo

Prevalência do desejo

Não há dialética

Dialética

Discurso único

Não há discurso único

Omertà

Interlocução

Encobrimento

Transparência

Topologia da esfera

Topologia moebiana

Autocracia

Estado de direito

Totalitarismo

(1=1=1=1=1=)

Democracia

(1+1+1+1+1+)

 

 

Não há lugar para a Psicanálise

 

 

Há lugar para a Psicanálise

 

Muito bem. Agora, Miller contra Miller. É difícil não reconhecer nas Escolas a estrutura trabalhada em “Psicologia das massas”, quando Freud aponta, como um dos paradigmas, a Igreja. A analogia pode ser constatada. A conjunção da orientação lacaniana com a liderança institucional produz uma gestão fortemente verticalizada. O autor confunde-se com o líder (Um da Exceção e Um do Ideal). Contexto que inclui a transmissão linear de um lacanismo dogmático, que trata a discordância como heterodoxia, e onde todos acreditam que se entendem e se comunicam na mesma língua — algo valorizado, pois a liberdade linguageira causa dispersão. Admite-se ilusão comparável a uma leitura correta de texto bíblico, que não acolhe leituras diferentes, nem permite que dissidentes sequer sejam lembrados. Cumprir a missão, ou a defesa da causa, é o que é feito com dedicação e eficiência. E uma ética é proclamada. O conjunto, desse modo fechado, induz à identificação, ao conformismo, à prevalência dos efeitos imaginários, com acirrada luta pelo poder, não sem lances de marcada obscenidade. Situa-se, inequivocamente, na lógica do todo, na lógica de grupo. No cenário descrito, o passe perde agalma, convertido que está em rito de passagem. E a psicanálise tende a apresentar-se com arcabouço de formação religiosa, ou então, movida por fascínio cada vez maior, como discurso universitário.

Características comuns a regimes totalitários propagam-se nas Escolas. A Associação Mundial insere-se na topologia da esfera ou do globo. Autocracia centralizada e hierarquizada. Cargos por indicação ou eleição com chapa única. Falta de transparência, com encobrimento de desmandos e omissões dos dirigentes. Lei do silêncio, eficaz para calar vozes dissonantes, em contexto que asfixia a interlocução. Imaginário de grupo vicejante, com engolfamento dos dispositivos institucionais. Discurso único, com o Um da irmandade fazendo laço contra a rivalidade mortífera. E, no mais, a certeza de fazer parte do corpo homogêneo de uma linhagem autêntica.

Numerosas outras verificações podem ser feitas a partir do quadro apresentado. Ficam esboçadas apenas algumas.

Seria absurdo conceber as Escolas como um conjunto entrelaçado de mosteiros lacanianos? Embora uma caricatura, a metáfora cumpre o objetivo de ressaltar uma indagação: do ponto de vista institucional, é o que restará do legado freudo-lacano-milleriano? O que é mais importante preservar: o autor ou o líder carismático?

Momento de concluir. Em 15 de agosto de 1980, uma Carta de Fundação traz o questionamento: o que é uma instituição psicanalítica? Em 2024, muitas aventuras (e desventuras) institucionais depois, a questão insiste.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


Veja também: