Ensaios de Psicanálise e Saúde Mental

 

ÍNDICE

Prefácio

Apresentação

Capítulo I
PSICANÁLISE E MEDICINA
– O corpo na psicossomática
– Notas sobre a história da medicina
– Anorexia e bulimia: de que se trata?
– A Dora do NIAB
– (Fragmentos de um caso de bulimia)
– O que quer uma mulher histérica?
– (Sobre um caso de infertilidade)
– O que é o pai? (Sobre a reprodução assistida)
– Medicina e consumo

Capítulo II
PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA
– Apresentação de paciente: o agalma de uma experiência
– Agudo/crônico: uma dicotomia que pesa sobre nossas cabeças
– O automatismo mental de Clérambault
– A catatonia de Kahlbaum e a hebefrenia de Hecker
– Doenças mentais e genética
– A monocultura e a paisagem (O psicofármaco para a psiquiatria e para a psicanálise)
– A psicanálise e os medicamentos antipsicóticos
– Impertinências (Em que condições o psicanalista sugere o uso de antidepressivo?)
– Um ponto de vista sobre os nossos CERSAMs
– Loucura e cidadania: A nova regra e suas exceções
– Como vejo a psiquiatria hoje (Entre as aves e as feras)

Capítulo III
PSICANÁLISE E SAÚDE MENTAL
– A psicanálise aplicada à saúde mental
– A lei simbólica e a lei insensata (Uma introdução à teoria do supereu)
– A lei insensata e a bárbara cena
– A urgência subjetiva na saúde mental
– Obsessão
– Pânico (Elementos para uma leitura psicanalítica)
– O tema é devoração
– Por falar em suicídio
– Psicanálise e violência urbana
– A angústia na psicose (Introdução ao tema e exemplos clínicos)
– A clínica da passagem ao ato (Acting out, passagem ao ato, agitação)
– O manancial do amanhã eterno (Sobre o tempo e o tratamento psicanalítico —uma introdução)
– O tratamento psicanalítico de uma criança (Com uma única intervenção)
– Um ponto de vista (discordante) sobre o CPCT
– Da anti-psiquiatria à anti-saúde mental

 

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DA ANTIPSIQUIATRIA À ANTISSAÚDE MENTAL

Por que este artigo no Blog?

Apresentado na abertura do Encontro Mineiro de Psiquiatria, em Belo Horizonte, em setembro de 2009, e depois várias vezes publicado, o artigo resume a trajetória do campo psiquiátrico ao campo da saúde mental e esboça o que seria uma atualização da inspiração antipsiquiátrica.

 

DA ANTIPSIQUIATRIA À ANTISSAÚDE MENTAL

A psiquiatria na vanguarda do progresso médico

é algo que se verifica a partir do seguinte ângulo:

o desmonte do modelo hospitalocêntrico,

a promoção dos serviços de saúde avançados.

Todavia, tanto a medicina como a psiquiatria e a saúde mental

vivem hoje grave situação:

a exclusão da subjetividade,

o apagamento da singularidade.

 

Da psiquiatria à saúde mental

Nos anos sessenta, tivemos a antipsiquiatria, a partir principalmente das contribuições de Foucault, na França, de Laing e Cooper, na Inglaterra, e de Basaglia, na Itália. Uma crítica da psiquiatria, na qual se podem distinguir três vertentes: a teórica, a profissional e a institucional.

Na vertente teórica destacarei o questionamento do conceito de normalidade, ou, mais precisamente, do binômio conceitual normalidade-doença mental. O hífen, muito mais do que separar, reuniria os dois termos. Ou seja, a doença mental não poderia ser reduzida a um extravio do caminho certo da normalidade, ou a uma excrescência que nada teria a ver com ela. Pelo contrário, normalidade e doença mental seriam partes de um mesmo contexto, frutos de uma mesma árvore, uma inconcebível sem a outra. A doença mental, não estranha à normalidade, e vice-versa: a normalidade, não estranha à doença mental. Mais do que isso, uma remeteria continuamente à outra, havendo entre elas, portanto, algo da ordem da causalidade, embora não se tratasse de uma causalidade linear. Assim sendo, não deveria ser objetivo do psiquiatra conduzir o doente mental à normalidade, mas, retirá-lo desse beco sem saída e tentar levá-lo a uma outra condição, que, em certo momento, Cooper chamou de metanóia.

Na vertente profissional situou-se o questionamento do psiquiatra. Ele seria a encarnação do movimento inaugurado por Pinel, no qual Foucault sublinha dois aspectos: a concepção da loucura como doença, no sentido médico, e a concepção da loucura como erro, no sentido moral. A partir de então, a loucura passaria a ser tratada como uma doença cujas principais causas seriam morais. É no contexto desse discurso médico-moralista que o tratamento moral constituir-se-ia como o fundamento de todo tratamento psiquiátrico. Embora os textos psiquiátricos tivessem exorcizado as referências à moral social —depois de enfatizá-la por mais de um século—, ela sobreviveria sub-repticiamente sob o manto da normalidade social.

Na vertente institucional, está a crítica do manicômio, enquanto instituição total. Para Foucault, Pinel não teria libertado os loucos de suas amarras; pelo contrário, teria reservado para eles o cerco dos hospícios. A fachada médico-terapêutica serviria para legitimar o regime de exclusão e segregação. Os loucos seriam os herdeiros da sina dos leprosos. Destituídos da fala, da circulação e inclusive de seus direitos civis, só lhes restaria o confinamento, situação que reforçaria a crença de que a normalidade nada teria a ver com a loucura.

Quem melhor extraiu conseqüências das idéias antipsiquiátricas foi Basaglia. O eixo de suas proposições pode ser condensado na fórmula desinstitucionalização da loucura. Assim se constituiria a sua psiquiatria democrática: primeiro, pela desmontagem dos muros institucionais que engessam a loucura (o hospício em primeiro plano), e segundo, pela criação de novos serviços, que se introduziriam na cidade, re-inserindo o louco ou evitando a sua exclusão. Depois de Basaglia, o objetivo da reforma psiquiátrica passou a ser a negação do hospital psiquiátrico, denunciado como lugar de exclusão, como manicômio, e que, como tal, deveria ser abolido. Situar o louco na cidade, mais do que uma questão geográfica, seria considerá-lo como cidadão. 

Quais os efeitos desse movimento? Perante questão de tal amplitude, salientarei um aspecto. A reforma psiquiátrica deu contribuição decisiva para a transformação do campo psiquiátrico, embora outros agentes tenham participado do processo de mudança. Refiro-me à constituição do campo da saúde mental. Não se trata aqui, evidentemente, de algo homogêneo; pelo contrário, existem numerosas versões de políticas de saúde mental. Procurarei indicar, não obstante, o que há de comum a todas elas, o que significa dizer o que caracteriza o campo da saúde mental. Privilegiarei, uma vez mais, as vertentes teórica, profissional e institucional.

Do ponto de vista teórico, a doença mental deixa de ser considerada doença no sentido estritamente médico, tal como o fazia a psiquiatria clássica, e passa a ser concebida como sobredeterminada por múltiplos fatores. É o que está presente na idéia de sofrimento mental, ou mesmo de transtorno mental.

Do ponto de vista profissional, a passagem do campo da psiquiatria para o campo da saúde mental representou a substituição da hegemonia absoluta do psiquiatra, em prol de um trabalho realizado por vários profissionais, de modo mais ou menos disciplinado, mais ou menos conflitivo. Os trabalhadores da saúde mental dominam agora o cenário.

Do ponto de vista institucional, houve o estancamento do modelo hospitalocêntrico, sendo que as propostas mais incisivas pregam a abolição sumária do hospital psiquiátrico. A ênfase recai sobre os serviços de saúde mental, que se apóiam em concepções como a rede ou o setor.

O campo da saúde mental, da forma pela qual está constituído, na contemporaneidade, apresenta alguns avanços, em relação ao campo da psiquiatria. Dentre eles: a concepção mais complexa dos problemas, a diversificação do trabalho profissional, o encolhimento da segregação nos hospícios e a inserção dos serviços na cidade. Todavia, é chegada a hora de uma crítica dos modelos da saúde mental, ou, como preferirei, do modelo da saúde mental. Por comodidade, ou por coerência, manterei a mesma ordem que venho seguindo até agora, considerando as três perspectivas: teórica, profissional e institucional.

 

Antissaúde mental

1.

No cerne do questionamento teórico da saúde mental está a noção de transtorno mental ou do comportamento, ou mesmo a de sofrimento mental. Embora não seja explícito, não há como delimitá-las senão a partir da norma social; ou seja, como desvio da norma ou como perda da faculdade normativa. 

Na verdade, desde sempre foi assim. Quando Pinel se dirigiu à Bicêtre e à Salpêtrière para o seu ato fundador, já encontrou lá, previamente selecionados pela sociedade, os tipos que deveria investigar e tratar. Mais adiante, e durante dois séculos, a psiquiatria tentou encontrar as bases anatômicas e fisiológicas capazes de confirmar as doenças mentais como doenças cerebrais. Em vão. Tem sido sempre a partir da norma social como horizonte que se isolam os quadros mentais. Antes de ser cerebral, a doença mental é social.

Poderia ser dito que a base estatística da norma social daria cienticificidade a esse critério. Entretanto, conforme assinala Jacques-Alain Miller, ainda que tenha base estatística, adaptar-se a ela é uma decisão política.

A questão principal, como se vê, não é a definição de transtorno ou de sofrimento mental a partir da norma social (ainda que ela não esteja explícita). A questão principal é fundamentar o tratamento na normalização, ou no retorno à normalidade. Quando as coisas são postas nesses termos, e é nesses termos que elas são postas, permanece intacta, ou mesmo reforçada, a lógica da exclusão. A normalização como base do tratamento é a versão contemporânea do tratamento moral, a sua reedição. É uma perspectiva que põe como imperativo o todos iguais. Uma perspectiva que visa à anulação da diferença. Ora, assim como tantos outros transtornados ou sofredores, o louco é irredutivelmente diferente; vê-se então, com clareza, o impasse no qual desemboca uma diretriz como essa.

Miller afirma, em outro momento, que não há definição de saúde mental que não seja ordem social. Com efeito, o objetivo da saúde mental é cuidar dos perturbadores da ordem social. Logo em seguida, ele corrige a sua definição: há dois tipos de perturbadores. Uns, considerados responsáveis, são encaminhados à Justiça, para que sejam punidos; outros, considerados não responsáveis, são encaminhados à Saúde Mental, para que sejam curados. Lacan, por sua vez, comenta que os trabalhadores da saúde mental agüentam a miséria do mundo, e que fazer isso “é entrar no discurso que a condiciona, nem que seja a título de protesto”. Refere-se ao discurso do Senhor contemporâneo —o discurso capitalista—, que trouxe a globalização que conhecemos na atualidade. O mundo globalizado introduz a universalização de modos de gozo uniformizados. É um mundo padronizado, onde impera a ideologia da avaliação; em que se pretende a quantificação da própria subjetividade; em que prevalece o homem sem qualidades. Nesse contexto, tudo o que é da ordem da diferença ou da singularidade é mal tolerado. Motivo pelo qual Lacan previu, para nosso futuro de mercados comuns, uma extensão cada vez mais dura dos processos de segregação.

A saúde mental trabalha para a normalização e por definição é ordem social. Por conseguinte, ainda que tenha contribuído para reduzir a segregação no nível dos hospícios, ela pode contribuir para reforçá-la, em outros níveis.

 

2.

No que concerne o aspecto profissional, a saúde mental parte da perspectiva de que o seu objeto de trabalho é complexo, tanto assim que exige profissionais de várias áreas. Trata-se, a meu ver, de um avanço, em relação ao que existia: uma visão puramente médica (psiquiátrica), em que outros atores eram apenas coadjuvantes. No entanto, o mínimo que se pode dizer é que, trabalhar em equipe, isso é algo que requer um planejamento muito mais exigente. E se temos uma equipe tratando de um problema de alta complexidade, não há como não privilegiar a questão da formação.

O que se constata, porém, é algo diametralmente oposto. Em vez de complexidade, simplificação. E em vez de aprimoramento da formação profissional, o emprego maciço de modelos de capacitação simplórios e pobres.  Cada ator tem seu papel circunscrito e deve ser pragmático, segundo uma ótica de resultados objetiváveis e de curto prazo. As tarefas seguem uma rotina sufocante e infernal: nada mais igual a um dia do que outro dia. Tudo o que foge a esse rito reverbera como um despropósito. O que se espera é quantidade, quantidade, nada mais do que quantidade. O tempo é sempre o tempo da pressa; não existe o tempo da pausa. Ou quando existe, é mal visto. Num esquema como esse, urge padronizar as condutas e tipificar os pacientes. Formação exigente? Só para tornar as coisas menos viáveis.

Na saúde mental, há cada vez menos lugar para a clínica, para a singularidade, para a criatividade, para a pesquisa, para o debate. O que vale é o ativismo, a palavra de ordem, o tecnicismo, a produtividade. Sim, produzir o máximo com o mínimo de gastos, como convém ao discurso do mestre contemporâneo. A qualidade do tratamento importa pouco. Não há como evitar a conclusão: o que se busca não são soluções minimamente eficazes para os casos, mas, sim, medidas para acomodar as aparências e remendar a ordem social.

 

3.

Agora, o aspecto institucional. Distribuir os serviços na cidade, como passo indispensável à inserção do paciente: é a idéia régia da saúde mental, em contraposição ao confinamento no hospício. Todo o problema surge, porém, como foi dito, quando se evidencia que se trata da inserção na normalidade. Os loucos, assim como os transtornados e os sofredores que estou considerando, são particularmente resistentes a isso.

No caso específico dos loucos, há um agravante. A psicanálise demonstra que a psicose é uma experiência que se caracteriza por uma exclusão fundamental. A psicose manifesta, ou loucura, está fora do discurso. A tendência à segregação do louco é um dado de estrutura. O hospício, a rigor, é a exclusão de um excluído. Mais do que excluir, ele institucionaliza a exclusão. Livre desse cerco, as coisas não se resolvem para o louco. Somente a criação de um laço social, mínimo que seja, poderá retirá-lo da condição em que se encontra. O que não é tarefa simples. No mundo contemporâneo, como foi dito, há um acirramento do conformismo, uma discriminação da diferença. O problema maior é que, na saúde mental, o louco se depara com a exigência do somos iguais, com essa máquina de excluir que é o imperativo normalizador. A possibilidade de manter-se segregado é grande; na sua família, nas ruas, onde estiver. É a neo-segregação.

Como tornar as coisas diferentes? O desafio é a superação do binômio exclusão-inserção, ou do binômio transtorno-normalidade; um tratamento que vise um acordo não do sujeito com a sociedade, mas um acordo do sujeito consigo mesmo, e que crie um laço social a partir de sua singularidade irredutível. O resultado seria alguém diferente: não transtornado, embora não normal. Desafio para o qual não se pode esperar apoio do discurso dominante, a não ser através de suas brechas. Pelo contrário, é preciso remar firme contra a correnteza.

Não é mais tempo da antipsiquiatria. Dela ficou-nos a herança, essa sim duradoura, de um espírito crítico que devemos ter sobre o nosso trabalho, sobre as nossas convicções e sobre as nossas melhores intenções. Por que não dizer? É tempo da antissaúde mental.

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