História mínima da clínica psiquiátrica

História mínima da clínica psiquiátrica[1]

 

A psicopatologia é tributária da clínica psiquiátrica. O que é a clínica psiquiátrica?

O ponto de partida é Pinel, personagem fascinante, tanto por seus acertos como por seus erros.

Embora seja prática social multimilenar, somente na segunda metade do século XVIII a medicina iniciou sua aproximação do método científico, com o nascimento da clínica.

O principal artífice da clínica foi exatamente Pinel, ao buscar no filósofo enciclopedista Condillac o método da análise, aplicando-o ao estudo das doenças. A clínica foi estruturada como experiência (que privilegia o olhar), método (a análise) e linguagem (que privilegia os signos).

Pinel trouxe de Condillac, também, concepções nominalistas, segundo as quais a armação do real seria semelhante à estrutura da linguagem. Sendo assim, a ciência não seria mais do que uma língua bem feita.[2]

Bichat baseou-se também no método da análise, mas não aceitou o nominalismo de Condillac. Com sua posição realista procurou enraizar epistemologicamente a clínica na anatomia patológica, criando o método anatomoclínico. “Abram alguns cadáveres”, eis o conselho que dava aos médicos de sua época.[3]

A orientação de Bichat tornou-se amplamente hegemônica na medicina de bases científicas. Pinel, por seu turno, até o fim da vida permaneceu surdo às lições essenciais da anatomia patológica. Para ele, o método clínico se bastava. Talvez, por esse motivo, dirigiu-se à Bicêtre e à Salpêtrière, para aplicá-lo ao estudo das alienações mentais. Nesse campo, devido à presença apenas contingente de lesões cerebrais, sua epistemologia ingênua aparentemente deixava de mancar. Sua postulação era inteiramente funcionalista: a alienação mental era um distúrbio funcional do sistema nervoso central. Ou seja, o distúrbio funcional era necessário, o dano cerebral era contingente.[4]

Com a medicina no método anatomoclínico e a psiquiatria no método clínico, as coisas caminharam por mais de meio século. Quando Bayle descreveu a paralisia geral, correlacionando achados clínicos e lesões anatomopatológicas,[5] o edifício da psiquiatria teve suas postulações mudadas.

Em meados do século XIX Griesinger, o pai da escola alemã, formulou sua hipótese anatomista radical: “Devemos ver antes de tudo na doença mental uma doença cerebral”.[6] A partir daí, a psiquiatria sonhou com seu ingresso pleno no método anatomoclínico da medicina.

Mas, foi só um sonho. Na prática, a psiquiatria prevaleceu como disciplina eminentemente clínica. O que se convencionou chamar de psiquiatria clássica foi o período que se estendeu de Pinel a Clérambault (passando por Esquirol, Baillarger, Guislain, Falret, Magnan, Séglas, Sérieux, Capgras, Charcot), na escola francesa, e de Griesinger a Kraepelin (passando por Kahlbaum, Schule, Kraft-Ebing, Meynert), na escola alemã.

A clínica psiquiátrica clássica, baseada numa fenomenologia elementar, gerou os fundamentos das elaborações psicopatológicas, e construiu, sobretudo, a nosologia psiquiátrica clássica, cuja expressão máxima foi a obra de Kraepelin: a oitava edição de seu Compêndio de Psiquiatria, de 1913, constituiu um tratado de quatro volumes e 2500 páginas.[7]

Paralelamente, o assentamento da medicina em bases científicas, que havia sido iniciado com o nascimento da clínica, foi concluído somente no início do século XX. Como resumir tão longa evolução? O normal e o patológico foram caracterizados no nível dos signos (Pinel), dos órgãos (Morgagni), dos tecidos (Bichat), das células (Virchow)[8] e das constantes do meio interno (Claude Bernard e Canon). Em outras palavras, o normal e o patológico foram estabelecidos em sólidas bases biológicas (clínicas, anatômicas e fisiológicas).

O ingresso da medicina no discurso científico teve duas consequências fundamentais: mudança do papel do médico e da concepção de corpo. O médico deixou de ser figura carismática para tornar-se, cada vez mais, um técnico. O corpo, por outro lado, evoluiu na expectativa de ser inteiramente fotografado, radiografado, calibrado, diagramado e condicionado: é o chamado corpo-máquina da ciência biológica, que deixa de lado a questão do desejo e do gozo.[9]

A mudança do papel do médico e da concepção de corpo abriu espaço para o surgimento da psicanálise. Por esse motivo Lacan afirmou que a psicanálise é a última flor da medicina.[10] Mas, não foi apenas a psicanálise que floriu nesse hiato.

Com Kraepelin, ficou encerrado um capítulo: a anatomia patológica nunca desempenhou para a psiquiatria o papel decisivo que representou para a medicina. No início do século XX, os psiquiatras concluíram: não se trata de questão de avanço científico; o problema é que o objeto da psiquiatria é diferente. Se o discurso científico exigiu da medicina a exclusão da subjetividade, tanto do observador como do observado, no caso da psiquiatria caminhou-se para rumo oposto, com o aparelhamento epistemológico visando ao estudo da subjetividade dos pacientes.

Tal empreendimento contou com pelo menos três aportes importantes: a fenomenologia husserliana, o existencialismo heideggeriano, e a psicanálise freudiana. É o tempo das escolas psiquiátricas. Menciono alguns de seus iniciadores: Bleuler, no caso das escolas psicodinâmicas (no Brasil, Iracy Doyle); Jaspers, no caso das escolas fenomenológico-clínicas (no Brasil, Leme Lopes) e Binswanger, no caso das escolas analítico-existenciais (no Brasil, Nobre de Melo). Desse modo, houve um distanciamento entre a psiquiatria e a medicina. A psiquiatria foi concebida como disciplina híbrida, em parte ciência natural, em parte histórico-cultural,[11] e a psicopatologia conheceu seu período áureo.

Em meados do século XX, uma reviravolta. O ponto de partida foi a introdução dos modernos psicofármacos. O primeiro ansiolítico foi o meprobamato (1950); o primeiro antipsicótico a clorpromazina (1952); o primeiro estabilizador do humor o lítio (1954) e o primeiro antidepressivo a imipramina (1957). O impacto causado pelos novos medicamentos foi decisivo.

Paralelamente a essa inovação terapêutica houve outra iniciativa de alcance incalculável: a publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM) da Associação Psiquiátrica Americana, em 1952. Trata-se de classificação dos transtornos mentais e do comportamento que se baseia na listagem e quantificação dos sintomas, realizada mediante consenso que se propõe cada vez mais amplo. Após quatro edições, a nova classificação alcançou êxito tão expressivo que definiu a orientação da própria Classificação Internacional de Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde, no final do século XX (1992).

O paralelismo entre o advento dos novos psicofármacos e o surgimento da nova classificação (DSM) não é questão de casualidade. O DSM é a classificação construída para a era dos psicofármacos. Os diagnósticos são simplificados e os sintomas explicitados como alvos, numa perspectiva sintonizada com as pesquisas e apropriada para o emprego clínico de tais medicamentos. A cada diagnóstico corresponde um tratamento específico e tratamento = supressão do sintoma: eis o princípio básico dos algoritmos psiquiátricos. Passou a existir hegemonia ampla do método estatístico, em função do qual os dados são tratados sob o manto da generalização. Nesse discurso não há lugar para a singularidade.

Com a introdução dos psicofármacos e o avanço das neurociências a psiquiatria pretendeu, enfim, seu ingresso no discurso científico e sua plena identificação com a medicina. Tal pretensão tornou obrigatória a exclusão da subjetividade, como mostram o DSM e de maneira paradigmática os ensaios clínicos, onde o poder da transferência é isolado e anulado sob a designação efeito-placebo.

Excluir a subjetividade, em vez de saber lidar com ela, é claramente um problema para a medicina. Basta lembrar que o mais importante dos sintomas, a dor, é um sintoma subjetivo. No caso da psiquiatria, a desconsideração da subjetividade trouxe nada menos do que o fim da clínica, tal como era concebida. Há algum tempo um colega psiquiatra disse, em tom de gozação, que num futuro próximo um computador fará a análise da fala do paciente e dará o diagnóstico de esquizofrenia. Como resposta, ouviu a manifestação de um otimismo ainda maior: o computador substituirá o psiquiatra.

Estaria próximo o fim da psiquiatria? Se nada mudar, é possível. Excluída a subjetividade, tornam-se apagados os limites da psiquiatria com a neurologia. Na prática, é o que se verifica. Cada vez mais psiquiatras se dedicam a temas antes restritos à neurologia, cada vez mais neurologistas medicam pacientes antes restritos à psiquiatria. Em vários países de primeiro mundo, não mais existe residência de psiquiatria: tornou-se um capítulo da residência de neurologia. E os psicofármacos estão sendo chamados de neurofármacos. A neurologização da psiquiatria evoluirá para a absorção da psiquiatria pela neurologia.

Tudo em nome do advento de bases científicas. No caso da medicina, trouxe avanços muito valiosos, mas, também, efeitos colaterais cujo preço é alto e que clamam por melhor manejo. No caso da psiquiatria, a identificação plena com a medicina foi inteiramente forçada e sem fundamento científico. Onde está a definição do normal e do patológico em sólidas bases biológicas (clínicas, anatômicas e fisiológicas)? Quando se perfilam os transtornos mentais e do comportamento incluídos no DSM, verifica-se que nenhuma caracterização biológica sustenta tal classificação. Sua base é outra. Enfim, a psiquiatria do DSM jogou fora a subjetividade sem se tornar científica. Rasa e universal, bem a gosto do consumismo globalizado, poderia sem exagero ser chamada de psiquiatria Big Mac.

Os psicofármacos sempre foram muito bem-vindos; intragável é a ideologia que, junto com eles, querem nos fazer engolir. É possível empregá-los seguindo outra política e outra ética.

Para terminar, a convicção de que este livro, que o Centro de Estudos Galba Veloso acaba de lançar, é uma amostra do que se pode fazer para evitar o pior. O que é o pior? Há uma expressão que os franceses gostam muito. “Não se deve jogar fora o bebê com a água suja do banho”. Pois bem. O risco é ainda maior: que a psiquiatria jogue fora o bebê e fique com a água suja.

 

NOTAS

[1] Apresentado no dia 23 de agosto de 2013, no auditório do Centro de Estudos Galba Veloso, da Residência de Psiquiatria do Instituto Raul Soares, Belo Horizonte, por ocasião do lançamento do livro Seminários em Psicopatologia, Coopmed, organizado por Rafael Miranda de Oliveira. Publicado em

WWW.franciscopaesbarreto.com em 01 de outubro de 2013 e em O bem-estar na civilização, CRV, 2016.

 

[2] Foucault, M. (1987) O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, p. 107.

[3] Foucault, M. Idem, c. VIII.

[4] Bercherie, P. (1989) Os Fundamentos da Clínica.  História e estrutura do saber psiquiátricoRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, c. 1.

[5] Bercherie, P. Idem, c. 5.

[6] Griesinger, W. (1865)  Traité des Maladies Mentales.  Paris: Adrien Delahaye, Libraire-Editeur, p. 1.

[7] Bercherie, P. Op. cit., c. 16.

[8] Canguilhem, G. (1990) O Normal e o Patológico, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, p. 183.

[9] Lacan J. (1985) Psicoanálisis y Medicina. In: Intervenciones y Textos. Buenos Aires:Manantial, p. 92.

[10] Lacan, J. (1975) Conversa com estudantes na Universidade de Yale, EUA (inédito).

[11] Alonso-Fernández, F. (1968) Fundamentos de la Psiquiatría Actual. Tomo I. Madrid: Editorial Paz Montalvo, p. 12.

 

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