Lacan e a Apresentação de Pacientes[1]
A apresentação de pacientes provém de uma longa tradição psiquiátrica e o Dr. Lacan continuou a praticá-la durante toda a vida, todas as semanas, até 1980, no Hospital Sainte-Anne; inicialmente, no serviço de Delay e depois no de Daumezon.[2]
Nos moldes da tradição psiquiátrica, a apresentação de pacientes era uma forma de transmissão que se inscrevia no discurso universitário, com o apresentador no lugar do saber e o paciente no lugar do objeto. Daí a crítica dos antipsiquiatras a essa “dissecção pública do mental, para o único benefício de uma assistência, no contexto de um certo racismo psiquiátrico”. Maud Mannoni, por exemplo, expressou-se nos seguintes termos a propósito das apresentações no Sainte-Anne: “Assim Lacan levava sua garantia a uma prática psiquiátrica tradicional em que o paciente serve de matéria prima para o discurso, e na qual o que se lhe pede é que venha ilustrar um ponto da teoria, sem que essa ilustração sirva minimamente para os seus interesses”.[3]
Não se reconheceu que, no exercício lacaniano da apresentação, havia simultaneamente continuidade e ruptura com a clínica psiquiátrica. O objetivo deixou de ser identificar, descrever e classificar as enfermidades mentais. Pelo contrário, para Lacan, não havia sentença mais sem remédio do que “É alguém perfeitamente normal”.[4]
Como situar o aspecto crucial da ruptura? Recorro às palavras de Laurent: “Todos testemunhavam a surpresa que tinham em ouvir Lacan interrogar alguém que não era mais um doente, mas que se tornava um sujeito; Lacan tentava tocar o sujeito no doente”.[5] Definido este objetivo, estamos no discurso analítico, mas, talvez, seja mais prudente dizer que a apresentação de pacientes é, por excelência, um lugar onde se experimentam os limites do discurso analítico, ou onde se exercitam as condições de entrada nesse discurso.
Sim, é, ainda, o lugar de uma verdadeira transmissão. Da parte do entrevistador, de um saber como fazer com o doente mental. A transmissão, de longe a mais importante, porém, é a de um saber que o paciente detem. De que se trata? Trata-se de um saber sobre a relação íntima do sujeito com a linguagem, do sujeito com o significante. Como é que se pode alcançar esse objetivo? A fórmula lacaniana “deixar falar muito tempo” é uma indicação, que pressupõe uma escuta. Outras indicações: precisar as circunstâncias do desencadeamento e pesquisar os fenômenos elementares.
Em muitos aspectos a psicanálise é herdeira da clínica psiquiátrica. E a apresentação de pacientes, experiência que ocorre uma única vez, é uma tyche que se situa no entrecruzamento da entrevista psicanalítica com a clínica psiquiátrica. Quando se consideram as psicoses, por exemplo, as referências mais seguras são tomadas da psiquiatria. Entre elas está o automatismo mental, síndrome proposta por Clérambault, e que Lacan avalia como o “mais próximo do que se pode construir de uma análise estrutural do que qualquer esforço clínico na psiquiatria francesa”.[6] Um aspecto do automatismo mental será agora destacado: os fenômenos xenopáticos. O sujeito tem a impressão de que seu pensamento está sendo objeto de alguma manobra e penetrado por idéias estranhas, que sua linguagem interior está sendo repetida, e que suas palavras e seus atos são impostos e comentados. Fenômenos tão singulares ressoam em seu íntimo como idéias totalmente alheias, impossíveis de reconhecer como algo próprio.[7] Como aponta Miller, não há como não visualizar aí o prenúncio “da grande ‘xenopatia’ que Lacan fundou no campo da linguagem com seu matema do Outro”.[8] Pouco mais adiante, Miller pergunta: “Por que o sujeito chamado normal, que não está menos afetado pela fala, que não é menos xenopata que o psicótico, não se dá conta disso?” Ou seja, a partir de então, a questão já não é “O que é um louco?”, mas “Como é possível não estar louco?” É nesse sentido que o louco é “perfeitamente normal”; fórmula que vai muito mais longe do que, por exemplo, dizer que a norma é social.
Quando a apresentação de paciente alcança êxito, contribui para esclarecer o diagnóstico, localizar o desencadeamento ou orientar a direção do tratamento. Por esse motivo serve, além de aprendizado, para fins terapêuticos.
Na atualidade, Miller comenta que não se ordena pelo diagnóstico de psicose, tributário de uma clínica universalizante que traça uma demarcação intransponível entre neurose e psicose. Seu esforço é focalizado na singularidade da invenção do sujeito em questão, alguma coisa que sustenta a função paterna para ele, e que lhe permite regular sua experiência, seu mundo.[9]
A apresentação de pacientes é uma experiência tensa, e que pode fracassar quanto aos seus objetivos. Por outro lado, tem seus riscos, pois seus efeitos nem sempre são positivos. Ao que tudo indica, todavia, os resultados compensam os riscos, e o agalma dessa experiência continua atraindo o público, numa tradição que já caminha para dois séculos de existência.
NOTAS
[1] Publicado na Opção Lacaniana nº 62, dezembro 2011. São Paulo: Edições Eólia, p. 181-183 e no livro O bem-estar na civilização, CRV, 2016.
[2] Laurent, E. (1989) Entrevista sobre a apresentação de pacientes. In: Clínica Lacaniana nº 3. São Paulo: UNICOPI, p. 149.
[3] Miller. J.-A. (1981) Enseñanzas de la presentación de enfermos. In: Ornicar? Nº 3. Barcelona: Ediciones Petrel, p. 51-52.
[4] Idem, p. 49.
[5] Laurent, E. Op. cit., p. 151.
[6] Lacan, J. (1966) De nossos antecedentes. In: Escritos (1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 69.
[7] Porot, A. (1967) Dicionario de Psiquiatría. Barcelona: Labor, p.82.
[8] Miller. J.-A. Op. cit., p. 58.
[9] Miller, J.-A. (2011) L’Être et l’Un. Orientation lacanienne, III, 13. Cours nº 11, mercredi 4 mai 2011 (inédito).