Leitura psicanalítica da ação do psicofármaco

 

Quais os fundamentos da associação do tratamento psicanalítico com o tratamento psiquiátrico?

A presença de um gozo avassalador é condição que, com frequência, está presente no curso do tratamento de um psicótico. A que se deve o gozo sem limites que invade o sujeito numa crise psicótica?  Em última análise, deve-se à falta do significante do Nome-do-Pai e à inoperância de alguma forma de suplência.  O Nome-do-Pai é o que regula, que delimita o gozo do Outro.

Como barrar o gozo se o Nome-do-Pai está foracluído e se a suplência é um dos objetivos do tratamento e não uma condição presente no início?  Indagação que tangencia problemas da prática clínica e que são muito graves.  Uma das consequências do gozo absoluto é o empuxo à morte, que pode conduzir à automutilação, à inércia autista ou à rebelião.  Em casos extremos, uma passagem ao ato pode levar ao suicídio ou ao homicídio.

O analista, então, depara com o paradoxo de ter que cortar uma faca com outra faca.  Ou seja: ele utiliza a via do significante para dizer não ao gozo, mas a via do significante é precisamente o que está anulado, num psicótico em crise.

Uma das respostas a esse dilema é a intervenção do tratamento psiquiátrico, como coadjuvante do tratamento psicanalítico. É preciso, porém, delinear os termos em que se fundamenta essa intervenção.

Inicialmente, definir o lugar do psicofármaco nesse tratamento.  A medicação como meio de reduzir ou eliminar sintomas, numa abordagem que procura excluir o sujeito, é o que Miller chama de efeito tamponador. Mas, existe outra perspectiva: o medicamento como prótese química, como tempero do gozo, como forma de barrar o gozo mortífero, pelos seus efeitos na regulação da economia psíquica. Ou ainda: o medicamento como forma de desangustiar, quando a angústia se mostra paralisante ou indutora de passagens ao ato. Trata-se de estratégia para permitir ou favorecer o trabalho psicanalítico, trabalho este que se faz pela via do significante.  Pode-se chamar a isso efeito possibilitador do psicofármaco [1].

A estratégia apontada encontra respaldo em textos de Freud e de Lacan.

 

Freud

 

Freud adotou a posição de um monismo epistemológico, que o levou a rejeitar a divisão entre ciências da natureza e ciências da cultura. Quanto a esse aspecto, sua inspiração fundamental foi Haeckel. Para o monismo não há, falando rigorosamente, ciência senão da natureza. Ora, se a psicanálise é uma ciência digna desse nome, então ela é ciência da natureza [2].

Tão firme convicção científico-natural levou Freud a um modelo físico-químico, a começar pelo próprio nome: psicanálise. Não se trata de fisicalismo absoluto, mas de concepção que prevê continuidade entre física e fisiologia e, num segundo plano, entre fisiologia e psicologia.

Em “Introdução ao narcisismo”, por exemplo, manifesta-se a esse respeito com toda clareza.

“É preciso não esquecer que todas as nossas concepções provisórias em psicologia devem ser, um dia, baseadas em alicerces orgânicos. Isso torna provável que sejam substâncias e processos químicos especiais que levem a efeito as operações da sexualidade e proporcionem a continuação da vida individual naquela da espécie. Tal probabilidade levamos em conta ao trocar as substâncias químicas especiais por forças psíquicas especiais” [3].

Em “Esboço de psicanálise”, Freud é igualmente incisivo: “O futuro pode ensinar-nos a exercer influência direta, através de substâncias químicas específicas, nas quantidades de energia e na sua distribuição no aparelho psíquico. Pode ser que existam outras possibilidades ainda não imaginadas de terapia” [4].

O advento da psicofarmacologia está explicitamente previsto. Mais do que isso: se as concepções psicanalíticas são “provisórias”, qual a perspectiva futura da psicanálise? Assoun delineia tal quadro de forma elegante.

“As correlações anatômicas fixadas, as substâncias químicas descobertas, as medidas realizadas, tópica, dinâmica e econômica concluídas; fechado o campo, a psicanálise como edifício metapsicológico se tornaria um ponto imaginário nos confins de uma anatomia, de uma física e de uma química acabadas. Sua morte e sua perfeição se conjugam, pois, em seu imaginário científico” [5].

 

Lacan

 

Tal como Freud, Lacan rejeita a divisão entre ciências da natureza e da cultura. Mas, a física, a química e a biologia nunca ocuparam, para ele, o lugar fundamental que ocuparam para Freud. Esse lugar foi ocupado, inicialmente, pela linguística. Tanto assim que o primeiro ensino de Lacan pode ser concebido como uma ampla, coerente e bem sistematizada leitura estruturalista de Freud.

Por outro lado, se Freud vê continuidade entre biologia e psicanálise, Lacan vê ruptura, devido à inscrição na estrutura da linguagem. Não obstante, ele acredita, de início, na psicanálise como ciência, assim como na linguística como ciência, inclusive matematizável, na perspectiva de um galileismo ampliado.

A certa altura, Lacan desiste do estruturalismo, mas não da estrutura. Em vez da linguística, é a lógica-matemática que assume importância fundamental. E no lugar de estrutura da linguagem, estrutura lógica: o matema. A lógica torna-se a ciência do real.

Há um último movimento: da lógica-matemática à topologia dos nós; da estrutura lógica à estrutura topológica; do matema ao nó borromeu. Nó este que não é matematicamente formalizado. Lacan desiste da matemática, assim como da psicanálise enquanto ciência, embora insista que ela só é possível a partir do discurso científico [6].

O resumo epistemológico apresentado mostra claramente que a posição de Lacan difere da de Freud. Isso tem consequências, inclusive para a prática clínica.

Enquanto Freud prevê, no futuro da ciência, uma confluência das concepções psicanalíticas com as ciências naturais, para Lacan isso é algo que nunca acontecerá. Para ele, são dois campos inexoravelmente separados, que se regem por princípios diferentes, e que no máximo podem se aproximar ou, eventualmente, se tocar. É, portanto, dentro de possibilidades reduzidas, ou de limites estreitos, que se pode trabalhar.

Algumas indicações recolhidas de textos lacanianos podem ajudar nessa tarefa.

No “Pequeno discurso aos psiquiatras” (1967), Lacan afirma: “A psiquiatria entra na medicina geral a partir da seguinte base: que a medicina geral, entra ela mesma, inteiramente, no dinamismo farmacêutico. Evidentemente, produzem-se aí coisas novas: obnubila-se, tempera-se, interefere-se ou modifica-se…” [7].

E em seu artigo “Como engolir a pílula”, Eric Laurent comenta a citação, dizendo que os termos obnubilação e tempero situam o psicofármaco a partir da família dos anestésicos. E acrescenta: “Num texto mais antigo, Lacan fazia a equivalência entre o Édipo e uma dose de anestésico. Poderíamos ainda reformulá-la como primeiro paradigma do gozo em Lacan. O Édipo permite a significantização, a neutralização do gozo. Nesse sentido, ele é sublimação ou anestesia” [8].

Ou seja, haveria uma equivalência entre psicofármaco e Édipo (Nome-do-Pai) quanto ao tempero, à neutralização do gozo. Este é um ponto em que o discurso psicanalítico toca o discurso psiquiátrico, ou vice versa, e que dá margem a uma associação, a uma aproximação entre eles.

 

Conclusão

 

O psicofármaco como meio de abolir o sintoma, numa abordagem que desconsidera o sujeito e visa à normalidade social, é o que Miller denomina efeito tamponador.

Outra perspectiva é o que está sendo chamado efeito possibilitador: (1) Quando o psicofármaco é utilizado para moderar o gozo ou (2) Quando o psicofármaco é utilizado para desangustiar, numa abordagem que considera a singularidade do ser falante. A indicação de tratamento psicofarmacológico ocorreria, portanto, quando o gozo ou a angústia se tornam paralisantes ou precipitadores de passagens ao ato, e visa a permitir ou favorecer o trabalho pela via do significante.

 

Belo Horizonte, 25 de outubro de 2016.

 

Bibliografia sugerida

Leitura resumida:

Laurent, E. Como engolir a pílula? In: Clique, Revista dos Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano, nº 1, 2002. Belo Horizonte.

Leitura avançada:

Milner, J.-C. (1996) A obra clara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

 

Publicado no livro Psicanálise e Psiquiatria: Aproximações, CRV, 2017.

 

NOTAS

 

[1] Barreto, F. P. (1999) O tratamento psicanalítico do psicótico: aproximações. In: Reforma Psiquiátrica e Movimento Lacaniano, p.152-153. Belo Horizonte: Itatiaia.

[2] Assoun, P.-L. (1983) Introdução à Epistemologia Freudiana, p. 50-1. Rio de Janeiro: Imago Editora.

[3] Freud,S. (2010) Introdução ao narcisismo (1914). In: Obras Completas, Vol. 12, p.21. São Paulo: Companhia das Letras.

[4] Freud, S. (1975) Esboço de psicanálise (1938). In: ESB, Vol. XXIII, p. 210. Rio de Janeiro: Imago.

[5] Assoun, P.-L. (1983) Idem, p. 215.

[6] Milner, J.-C. (1996) A obra clara, Capítulo IV e V. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

[7] Lacan, J. (1967) Petit discours aux psychiatres (inédito). 

[8] Laurent, E. (2002) Como engolir a pílula? In: Clique, Revista dos Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano, nº 1, 2002,  p. 29. Belo Horizonte.

 

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