As questões de gênero são altamente polêmicas e atuais. O que se procura não são as melhores respostas, mas, as melhores perguntas. A abordagem, no tema agora proposto, será feita por itens, escolha que pode não ser a mais adequada, mas é a mais didática.
Existe uma teoria convencional, ou tradicional, fortemente ancorada na biologia, que propõe masculino e feminino com base na anatomia, e a serviço da reprodução. Posição que reverbera célebre frase de Napoleão: “A anatomia é o destino”. Teoria que coloca o masculino em superioridade: o feminino é o sexo frágil, pois, é evidente que o homem é mais forte. Tudo o que escapa a isso (homossexualismo, por exemplo) é tratado como anormalidade, doença, delito ou degradação moral. Não se pense que estamos longe disso. Alan Touring, cientista inglês, considerado “pai do computador” e herói da Segunda Grande Guerra, suicidou-se depois de ser condenado à castração química, por ser homossexual.
O livro “O segundo sexo” (1949), de Simone Beauvoir, é considerado marco do feminismo atual. Depois dele, e de numerosos outros fatores, o feminismo cresce enormemente, em particular nos países ocidentais, e a emancipação das mulheres marca, de forma nítida, nossa cultura contemporânea.
Em 1973, após grande pressão do movimento gay e também de muitos psiquiatras, a Associação Psiquiátrica Americana muda o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais e do Comportamento). Retira o homossexualismo da condição de transtorno patológico, e passa a considerá-lo como variação da orientação sexual.
Nos anos 1990, cresce o movimento queer, como atividade política e iniciador de nova teoria de gêneros. Tem participação importante na liberação dos costumes. A sigla LGTB precisou ser aumentada: LGTBQIA+. A nova teoria postula que, nos seres humanos, os gêneros não são atrelados à realidade biológica ou anatômica. Nem reduzidos à polaridade masculino/feminino. A metáfora que melhor se presta ao que existe é um arco-íris. E a orientação sexual de cada um não deve ser motivo de discriminação ou vergonha, mas de orgulho. Concluindo esta parte: a emancipação das mulheres e a liberação dos costumes marcam a subjetividade contemporânea, pelo menos na cultura ocidental.
A posição da psicanálise é diferente das que foram expostas. Em primeiro lugar, deve ser assinalado: a linguagem causa uma ruptura entre o ser humano e a natureza, ou entre o que é humano e os outros animais. Assim sendo, por exemplo, não se deve dizer instintos sexuais nos humanos, mas, sim, pulsões sexuais. Qual a diferença? Os instintos são mais fixos quanto a seus objetos e quanto a seus modos de satisfação. E, em geral, visam à reprodução da espécie. Os objetos das pulsões são mais variáveis, assim como os modos de satisfazê-las. E, na espécie humana, atividade sexual não está atrelada à reprodução. Existe atividade sexual sem reprodução e a reprodução assistida dispensa a atividade sexual. O objetivo da pulsão é a satisfação (gozo).
Também para a psicanálise a anatomia não é o destino. Masculino e feminino não estão atrelados à realidade biológica, como nos outros animais. Nos humanos, são seres de linguagem, o que quer dizer: o biologicamente feminino pode inscrever-se do lado masculino e o biologicamente masculino pode inscrever-se do lado feminino. E a orientação sexual não deve ser motivo para rebaixamento ou discriminação: desde os “Três ensaios sobre a sexualidade”, de 1905, Freud é taxativo quanto a isso.
Embora não definida biologicamente, a psicanálise se apoia na oposição fundamental entre masculino e feminino, a bela diferença… Em que termos?
Para Freud, no inconsciente só há inscrição do sexo masculino, por meio do falo. Para o sexo feminino, não há inscrição equivalente ao falo. Razão pela qual afirma que a mulher é o continente negro da psicanálise, e faz a célebre pergunta: “O que quer uma mulher?”
No inconsciente (e não na psicanálise), o falo é narcisicamente valorizado, e a ausência dele, definida como castração, pelo contrário, é desvalorizada. A castração domina a psicologia feminina, no que Freud denomina inveja do pênis. A psicologia masculina, por seu lado, é dominada pelo medo à castração. Masculino/feminino, então, corresponde ao par antitético fálico/castrado, que por sua vez remete ao par antitético ativo/passivo.
O texto freudiano á marcado por críticas sistemáticas e severas à moral sexual civilizada (moral vitoriana), que reduz a vida sexual ao casamento monogâmico e para fins de procriação, como em algumas religiões ainda hoje em dia. Moralidade que inibe principalmente as mulheres, já que os homens comumente têm moral sexual dupla. Para Freud, a chamada “debilidade mental fisiológica das mulheres” seria, na verdade, resultado da inibição sexual. A emancipação das mulheres trouxe provas irrefutáveis dessa tese.
Lacan avança. O segundo sexo não existe porque não há inscrição do sexo feminino. A diferença é esta: o masculino existe, o feminino não existe. Daí sua célebre afirmação: “A mulher não existe”. O enigma se esclarece quando se recorre à matemática, onde Lacan se inspira. A diferença entre feminino e masculino é comparável à diferença entre 0 (zero) e 1 (um). A formalização dessa diferença constitui passo gigantesco da matemática. Da mesma forma, a oposição entre masculino e feminino é a oposição entre o sexo que existe (1) e o sexo que não existe (0).
Como situar, porém, todo um arco-íris de possibilidades? É preciso lembrar que a lógica binária, que se funda na diferença entre 0 (zero) e 1 (um), é a base da informática, e se abre para um número infinito de possibilidades. Nenhuma dificuldade. A sigla pode progredir à vontade: LGTBQIA+PE!@#$x?… E, para a psicanálise essa é uma sigla trans-estrutural, ou seja, que passa por diferentes estruturas clínicas.
Ao levar a psicanálise às últimas consequências, qual o resultado? A fantasia fundamental (que indica o modo de gozo) é diferente para cada sujeito, é única, é específica, é própria de cada um. Motivo pelo qual o encontro amoroso é tão complexo (Freud fala de maldição do sexo nos humanos). E razão pela qual a psicanálise não é uma ciência: o método científico é estatístico, e não se faz estatística com singularidades.
Em síntese: há significante do sexo masculino, mas não do sexo feminino. A proposta lacaniana, entretanto, não fica aí. Inclui a questão do gozo. O gozo masculino é o gozo fálico. Uma mulher, também tem acesso ao gozo fálico, tal como o homem (o mundo contemporâneo mostra isso claramente, com as mulheres desempenhando papéis masculinos com enorme destreza). Qual, então, a diferença? As mulheres têm acesso a um segundo gozo, o gozo especificamente feminino, indefinível, como o gozo místico. Lacan responde à pergunta de Freud. O que quer uma mulher? Ela quer gozar.
Como se vê, a psicanálise formaliza o que é especificamente feminino, ao contrário de muitos movimentos feministas, que, presos à inveja do pênis, postulam um machismo de saias.
O falo, por conseguinte, é o significante do sexo masculino, enquanto que, para o sexo feminino, não há inscrição de significante específico, o que pode ser vivido como castração, ou como defeito. Não para a psicanálise, que considera a falta como um dado de estrutura.
O que acaba de ser dito é válido para a estrutura neurótica. No caso da estrutura psicótica o que ocorre é algo diverso. O que caracteriza uma psicose é sua operação estruturante, a foraclusão. Mais exatamente, foraclusão de um significante fundamental, o Nome-do-Pai. Isso equivale a dizer que não há metáfora paterna e, portanto, não há o que resulta dela, ou seja, o significante fálico. Ora, se na estrutura psicótica não há inscrição do significante do sexo masculino, então não há, a rigor, diferenciação sexual. Motivo pelo qual Lacan afirma que o psicótico é ex-sexo, ou seja, fora do sexo, ou fora da diferença sexual.
Um exemplo para ilustrar. Um pai procura um psicanalista, angustiado. “Além de meus próprios problemas, que são muitos, têm os problemas de meu filho. Ele descobriu ser uma mulher trans. Contra a minha vontade, viajou para a Tailândia, pois, lá, a cirurgia é bem feita e mais barata. Voltou muito satisfeito com o resultado, e quis até me mostrar. Algum tempo depois, nova constatação. Veio me contar que descobriu que é lésbica.”
Para Lacan, os casos de transexualismo se esclarecem quando se leva em conta sua face psicótica. A foraclusão explica prontamente e com muita facilidade esses casos. Explica também a diversidade apresentada por certas teorias de gênero. Mais uma vez, vale lembrar que não há aqui juízo de valor. Neurose e psicose não são doenças ou estados degradados, são estruturas existenciais. Tanto assim que Miller comenta: enquanto que o primeiro Lacan aplica a psicanálise à psicose, o último Lacan aplica a psicose à psicanálise. E o paradigma, no caso, é nada menos que James Joyce.