O casamento da histérica com o obsessivo

O casamento da histérica com o obsessivo[1]

 

As estruturas clínicas

A clínica lacaniana organizou-se em três estruturas que se constituíram a partir do legado freudiano: neurose, perversão e psicose. O que fundamenta a distinção é a operação estruturante específica de cada uma. No caso da neurose, foi bem definida por Freud: o recalque (Verdrängung). Um dos méritos de Lacan foi o de reconhecer a operação própria da psicose, a forclusão (Verwerfung), bem como a da perversão, o desmentido (Verleugnung). De que se trata, em última análise?

Para expor a questão de forma sumária, é preciso trabalhar, pelo menos, três termos: Sujeito, Outro e Castração.

O que é o Outro, em Lacan? Numa primeira abordagem, o Outro é a estrutura da linguagem, é a cadeia significante, é a ordem simbólica, que opera por mecanismos próprios (metáfora e metonímia). A linguagem diferencia radicalmente o reino humano do reino animal. Mais que diferenciar, o ingresso na linguagem marcou uma ruptura entre o universo humano e o universo animal. O humano tornou-se, por excelência, universo do discurso, onde se incluem as expressões sociais e culturais. O Outro, ou a ordem simbólica, ou a ordem da linguagem, por conseguinte, é a matriz do que é genuinamente humano.

Ao Outro, a psicanálise opõe o Sujeito. Se o Outro é ordem, é matriz, é estrutura, o Sujeito é único, é efeito, é singularidade. O Outro ou a ordem simbólica antecede o Sujeito. Ou seja: antes do Sujeito nascer, condicionado por um corpo biológico, o Outro já estava aí. Da mesma forma, o Outro persiste depois que o Sujeito deixa de existir. Ou quando se restringe a um nome, anunciado por: aqui jaz.

Para a psicanálise, a constituição do Sujeito é algo complexo, que começa, na melhor das hipóteses, pelo desejo dos pais. Mais adiante, ficará também a cargo dos pais a mediação, para o filho, do que diz respeito à ordem simbólica: pode-se, então, falar de Outro paterno, ou de Outro materno. Muito se enfatiza, nos dias de hoje, a hereditariedade ou herança, mas esses termos ficam reduzidos ao que é da ordem da biologia, ou da genética. A psicanálise, porém, leva em consideração a herança simbólica. Algo que passa dos pais para os filhos, mas em outro nível. Qual seria a essência dessa herança simbólica? Dizendo rapidamente algo que não é simples, trata-se de um significante que é capaz de organizar o mundo do Sujeito e de representá-lo. Representá-lo para quem? Para o Outro.

Numa segunda abordagem, portanto, O Outro pode ser definido como a ordem simbólica tal como é apreendida pelo Sujeito. O Outro é o Outro do Sujeito, que pode encontrar várias encarnações possíveis: o pai, a mãe, o médico, o professor, o juiz, o delegado, o prefeito, o padre, etc., etc.

Disse, há pouco, que na herança simbólica há um significante-chave. Lacan designou-o como o significante do Nome-do-Pai. Fazendo um paralelo, eu diria que o Nome-do-Pai é o DNA da herança simbólica. Por outro lado, as três estruturas clínicas já mencionadas dependem exatamente das vicissitudes da herança simbólica, isto é, de como ocorreu a inscrição do significante do Nome-do-Pai.

O Nome-do-Pai é, exatamente, o significante que opera a castração. A inscrição do Nome-do-Pai no Outro do Sujeito é condição necessária para a inscrição da castração.

Lacan afirma que “O estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro A”.[2]

Dizendo mais claramente de que se trata: na psicose, não há inscrição do Nome-do-Pai no Outro, ou o Outro não é castrado. Poderia ainda ser dito que o psicótico, inconscientemente, não admite a castração materna. Na psicose o grande A não é barrado. O que se chama de forclusão, portanto, é a exclusão fundamental do significante paterno, e consequentemente, da inscrição da castração.

E na neurose? Nesse caso, há a inscrição do significante paterno no Outro do Sujeito, que se mostra barrado: A/. O neurótico, por conseguinte, tem registro da castração materna. É o que se passa no plano simbólico. No plano imaginário, porém, o neurótico acredita na completude do Outro, acredita na existência da proporção sexual, e nega, desse modo, a castração. O resultado é uma vacilação entre A barrado e A não barrado, entre A e A/. Ou seja: enquanto na psicose há uma certeza, na neurose há uma vacilação.

E na perversão? Aqui, existe a inscrição do significante paterno e da castração, mas, por outro lado, verifica-se a coexistência de duas posições diametralmente opostas. A castração é, ao mesmo tempo, admitida e negada. O perverso administra, sem conflito, a concepção do Outro barrado, A/, ao lado da concepção do Outro não barrado, A. É o que se chama de desmentido.

 

 

 

CLÍNICA LACANIANA

 

ESTRUTURAS

CLÍNICAS

OPERAÇÕES ESTRUTURANTES GRANDE

OUTRO

 

Neurose

 

Recalque (Verdrängung)  A ou A/?
 

Perversão

 

Desmentido (Verleugnung)  A e A/
 

Psicose

 

Forclusão (Verwerfung)  A

 

 

A histérica e o obsessivo

 

As três estruturas clínicas apresentam diferentes tipos clínicos. Para o que é do nosso interesse, hoje, ficarei restrito aos dois principais tipos clínicos de neurose: a histeria e a obsessão.

Darei, logo de início, duas mini-definições, a partir do que foi colocado. Como foi dito, a neurose pode ser definida como vacilação entre A e A/,[3] entre Outro castrado e não castrado, ou incompleto e completo, ou inconsistente e consistente. A histeria como tipo clínico, por sua vez, pode ser definida como fuga da vacilação pela exacerbação da falta, enquanto que a obsessão seria a fuga da vacilação pela obliteração da falta. É um começo de abordagem da nossa questão.

Com base nesses termos, o casamento da histérica com o obsessivo evoca o casamento da chave com a fechadura, que faz acreditar na existência da proporção entre os sexos, na complementação de um pelo outro. Eis aí o apelo imaginário que sustenta a união. Mas eis aí, também, o logro ou o engano que faz a tormenta do casal. Pois a ânsia de obturar do obsessivo só tem paralelo na ânsia de esburacar da histérica.

Como é que cada Sujeito trata o Outro? O sujeito da histeria é atraído pelo amor à figura do Mestre, pelo amor ao seu saber, tal como mariposa atraída pela lâmpada. Sua intenção, num primeiro momento, é a de reconhecê-lo, mas, num segundo momento, é a de destitui-lo, ou destrui-lo, ao apontar-lhe a falta. É a paciente que “prova” que o grande médico não consegue curá-la, é a aluna que descobre o que o sábio professor desconhece, é o infrator que dá um nó no policial famoso.

O sujeito da obsessão, por seu turno, visa de imediato à destruição do Outro na constituição de seu desejo. Trata-se de uma destruição articulada no nível do significante. Isso, num primeiro momento. O problema é que, a destruição do Outro, nesses termos, resulta na destruição do próprio Sujeito, pois se trata do Sujeito da fala. Como consequência, o obsessivo, num segundo momento, visa à restauração amorosa do Outro… O que era ódio converte-se em servidão. Tudo para o Outro… na tentativa de reparar o dano causado.[4]

Pode-se ver, por aí, que o Sujeito, da histérica, é o Outro, do obsessivo, e vice-versa. Razão pela qual o casamento da histérica com o obsessivo tem tudo para dar certo, e tudo para dar errado.

As coisas não ficam por aí. É preciso considerar, por exemplo, a questão do objeto, a questão do desejo.

Quanto a isso, qual a posição da histérica? Classicamente, ela se apresenta como sedutora, ou como objeto de desejo. Todavia, há algo de particular nesse oferecimento; ela recua, ou se retrai, quando o conquistador se aproxima. Ela se mostra como objeto que se furta.

E qual a posição subjetiva do obsessivo em relação à questão do desejo? Para ele, o objeto de desejo é imaginariamente sustentado pela proibição do Outro. O suplício do obsessivo, então, é este: o desejo desaparece quando o objeto a ele se entrega.

 

Também quanto a esse aspecto podem ser captadas a bodas da histérica e do obsessivo. Falei de amor. Em seguida, falei de desejo. Agora, falarei de gozo.

Quanto ao sujeito da histeria, é bem conhecida a fórmula segundo a qual a histérica tem desejo de desejo insatisfeito. Satisfazer o desejo é matar o desejo; sendo assim, insatisfazê-lo é elevá-lo à sua plenitude. Nada de gozo! A histérica quer desejar, a histérica não quer gozar.

E o obsessivo? Ora, se o obsessivo anula o Outro, ele destitui o parceiro como sujeito, ele o reduz à condição de objeto, objeto de seu gozo. A histérica ocupa a posição de objeto com facilidade, de objeto pequeno a, e nesse aspecto ela favorece a parceria amorosa com o obsessivo. Por outro lado, o encontro do desejo impossível de um com o desejo insatisfeito da outra é um complicador previsível.

Para concluir: a parceria amorosa da histérica com o obsessivo é de tal ordem que os aspectos determinantes da aproximação são exatamente os mesmos que perturbam o casamento. Dizer que tem tudo para dar certo é tão procedente como afirmar que tem tudo para dar errado. Mais uma vez, não há regras, não há garantias e não há como se guiar por valores universais. As estruturas e os tipos clínicos são generalizações, são abordagens universalizadoras. Numa experiência psicanalítica, cada parceria, cada sujeito terá uma história e um desfecho que serão da ordem da singularidade, e não há estatística possível quando o caso é único.

 

 

 

HISTERIA

 

 OBSESSÃO
Fuga da vacilação

pela exacerbação da falta

Fuga da vacilação

pela obliteração da falta

O sujeito corteja o Mestre

para em seguida destitui-lo

O sujeito destroi o Outro

para em seguida reconstitui-lo

Enquanto objeto de desejo

seduz e depois se furta

Quando o objeto se oferece

o desejo se retrai

A histérica quer desejar

não quer gozar

O obsessivo quer gozar

sem vigor de desejo

O sintoma é metafórico:

dois num só tempo

O sintoma é metonímico:

um em cada tempo

Problematização do feminino:

O que é uma mulher?

Problematização do masculino:

O que é um pai?

O sujeito da histérica

é o Outro do obsessivo

O sujeito do obsessivo

é o Outro da histérica

 

 

Fragmento clínico

Sou procurado para análise por um senhor de meia idade. O que trarei em seguida é uma montagem, uma reunião de diferentes momentos, à maneira de um potpourri.

—“Sou de família paupérrima. Meu pai era carpinteiro e alcoólatra, minha mãe lavadeira, morávamos numa favela. A duras penas consegui me formar num curso superior. Sou bem sucedido na profissão, sou casado, tenho três filhos. Já fiz cinco anos de análise, que não resolveram nada, decidi então mudar de analista. Tenho um único problema na vida: sou totalmente frustrado na minha vida sexual, e isso perturba a minha vida como um todo.”

—Como assim?

—“Sou apaixonado por minha mulher, que, além do mais, desperta em mim uma grande atração sexual. Sou correspondido no meu amor; afinal somos casados há longos anos, não posso dizer que ela não gosta de mim. Mas, do ponto de vista estritamente sexual, minha vida é uma desgraça. Eu penso nela o dia inteiro, sonho com ela, masturbo-me com ela, e ela está do meu lado na cama, dorme comigo…”

—Ela dorme com você?

—“Literalmente. Não é que a gente não transe. A gente transa, sim. Mas, é muito pouco. Quando a gente transa, é uma verdadeira maravilha. Eu durmo feliz, fico uma semana alegre, de tão bom que é.”

—Então, você não é totalmente frustrado.

—“Acontece que, de tão bom que é, eu fico querendo mais. E sabe o que acontece? Passa uma semana, nada. Passam duas semanas, nada. Às vezes, chega a passar um mês! Demora tanto que algumas vezes, quando ela cedeu, eu brochei. E não adianta eu insistir, porque senão dá briga e até ameaça de separação. Eu tenho que ficar quieto no meu canto aguardando o sinal.”

—Sinal?

—“É… a gente percebe quando ela quer… depois de tanto tempo juntos… são pequenos sinais de receptividade…”

—É um casamento e tanto.

—“De maneira alguma. O senhor diz isso porque não avalia corretamente o meu sofrimento. Sou muito aceso, sexualmente. É tão difícil suportar a longa abstinência que uma colega de trabalho, a quem confessei meu drama, sugeriu-me pular a cerca. Durante muito tempo pensei nisso, bolei mil planos, mas nada foi pra frente.”

—Não é a mesma coisa.

—“Não, não é. E tem mais: suspeitei que a minha colega de trabalho disse isso porque gostaria que eu pulasse a cerca… com ela. Ela é casada, mas não é castrada… Eu é que me sinto assim: casado e castrado.”

—Mas… O que você faz, para namorar a sua mulher?

—“O que eu faço? Como assim? Afinal, já somos casados! E o que é pior: há tantos e tantos anos, que nem sei se ainda dá tempo de recomeçar.”

—Tempo de reconquistá-la.

—“Não, não há mais tempo.”

—Nunca é tarde.

 

 

NOTAS

[1] Publicado em PUC MINAS: PSICOLOGIA EM REVISTA, v.17, n. 3, 2011. file:///C:/Users/Francisco/Downloads/3317-13529-2-PB.pdf

e no livro O bem-estar na civilização, CRV, 2016.

[2] LACAN, J. (1985) O Seminário. Livro 3: As psicoses. (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 

[3] SOLER, C. Fines Del Analisis. Historia y Teoria. In: Finales de Analisis. Buenos Aires: Manantial, p. 29.

[4] TEIXEIRA, A. M. R. As bodas sintomáticas do obsessivo com a histérica. In: Agora: Estudos em Teoria Psicanalítica, vol. 13 nº 1. Rio de Janeiro: Agora, jan/jun 2010.

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