Há não muitos e muitos anos, num país não se sabe onde, mas que se presume não muito distante, os sábios e também os leigos estavam cada vez mais preocupados com o aumento das doenças mentais, o que, segundo dados (idôneos) do governo, resultava num terrível, pavoroso, multinacional aumento do número de doentes mentais, que, além de abarrotarem os hospitais psiquiátricos e de serem por eles abarrotados, estavam ainda vicejando por todos os cantos nas monstrópoles. Pois é. Foi aí que decidiram, como era de praxe, realizar um Congresso, recrutando as maiores e mais afamadas autoridades, uma de cada área e uma de cada ária. Um psiquiatra benigno, um psicólogo crível, um psicanalista loquaz, um parapsicólogo realista, um curandeiro honesto, um sacerdote casto e um distinto macumbeiro. Em suma, sumidades que se somem.
–– Quem está melhor capacitado para curar o doente mental ––disse o psiquiatra durante o Congresso–– é o psiquiatra. Somente um médico especializado pode compreender a influência do corpo sobre a mente, descobrir o distúrbio orgânico que causa a doença mental, e encontrar o remédio para essa moléstia.
–– Discordo ––aparteou o psicólogo–– porque a doença mental, como o próprio nome já indica, é uma doença da mente ––argumentou com a perspicácia de uma águia. E concluiu: –– Sendo assim, só mesmo um psicólogo para sondar a insondável lógica do psiquismo humano e refrescar os seus males.
–– Sinto muito, mas não posso endossar os psicolegas que me precederam ––sussurrou o psicanalista. –– A doença mental não está no corpo nem na mente, mas numa região especial que começa num e acaba noutro: o inconsciente. Mas lá quem chega é só eu.
–– Não está em nenhum desses lugares ––esbravejou o parapsicólogo. –– Os sábios que falaram até agora estão se baseando em fenômenos normais, examinados através da percepção sensorial. Para detectar as verdadeiras causas da doença mental, precisamos estudar os fenômenos paranormais, através da percepção extra-sensorial. Disso, só a minha metapessoa é capaz.
–– Quá quá ––zombou o curandeiro. –– Vocês olham tudo, mas não vêem o mais óbvio: a natureza. É ela que influencia a cada segundo os organismos, levando-os à saúde ou à doença. Eu, utilizando uma fórmula que tem por ingredientes algumas substâncias naturais, muita esperteza e uma pitada de fé, curo mais doentes mentais do que todos vocês reunidos.
–– Com exceção de mim, reagiu o sacerdote. –– Por motivo muito simples: a causa primeira da doença mental não está no corpo nem na mente, não está na natureza nem no inconsciente, não está no mundo normal nem no paranormal. Está é no outro mundo: está em Deus, Ele é que tem a causa e a solução de todos os problemas. E Ele é meu parceiro.
–– Mas infelizmente ––falou com ironia o macumbeiro–– isso só não basta. O seu Oxalá é responsável apenas pelas boas coisas que existem no mundo. As coisas más, devemo-las a Exu. É necessário ter parte com Ambos, para obter o sucesso que só eu obtenho.
Resultado: o Congresso viu-se em grave impasse. E os sábios, profundamente deprimidos e angustiados, pois não chegaram ao consenso. Num dado momento, um deles, não se sabe qual, mas o leitor já pode exercitar a sua preferência, um deles teve idéia genial:
–– Nossa dúvida é dilacerante, não chegamos a uma conclusão. Antigamente, numa situação como essa, os sábios procuravam ouvir os conselhos dos mais velhos… Por que não fazemos o mesmo ? Eu conheço um ancião, um sábio que tem cem anos, mas com saúde de ferro e memória de elefante. É muito respeitado e mora numa cidadezinha do interior, uma das poucas que ainda não foram beneficiadas pelo progresso. Por que não vamos lá?
A sugestão foi unanimemente aceita. Chegando lá, o psiquiatra iniciou o diálogo:
–– Ó Velho Sábio, vimos pedir-lhe ajuda. Nossa cidade está, cada vez mais, infestada de doentes mentais. Estamos alarmados, já não sabemos o que fazer.
–– Pois não, meus filhos. Farei o que puder. Expliquem-me, primeiro, uma coisa: o que é um doente mental? Não sei de que estão falando.
Perplexos, os sábios explicaram, cada um a seu modo, o que era um doente mental.
–– Serei sincero ––advertiu o Velho Sábio. –– Estou muito velho para crer em teorias. Se querem o meu auxílio, levem-me para conhecer a sua cidade e para ver essas pessoas, os doentes mentais.
O pedido foi realizado. Os congressistas mostraram-lhe a cidade e dirigiram-se a um hospital psiquiátrico. O psiquiatra foi lá dentro, buscou um paciente ––um senhor idoso–– e, apresentando-o ao ilustre visitante, disse-lhe:
–– Eis aqui um doente mental. É um Processo de Demência Senil.
O Velho Sábio tomou o senhor pelas mãos, passeou e conversou com ele, e ao voltar concluiu:
–– Um indivíduo caduco. Na minha terra os caducos são tratados por suas próprias famílias, com paciência e carinho. Parece que vocês não têm tempo para isso, não é mesmo?
–– Agora, sim, um doente mental. Um Oligofrênico.
Após nova conversa, o Velho Sábio exclamou:
–– É um menino retardado. Na minha cidade existem alguns. Não são inteligentes, mas ajudam na lavoura, ou, na pior das hipóteses, brincam com algazarra nos quintais das casas. Mas a cidade de vocês é engraçada… Vocês constroem as casas umas em cima das outras…
–– O protótipo de um doente mental: um genuíno Esquizofrênico Paranóide!
Não demorou muito…
–– O louco é figura muito característica. Conheço um que vive envolto em suas crenças e em suas cismas. As pessoas não conseguem entendê-lo, mas deixam-no à vontade. Os loucos só se tornam perigosos quando violentados. A cidade de vocês é muito violenta. Eu acho que…
–– Converse com este, mas cuidado: é muito perigoso. Uma bela Personalidade Psicopática.
O veredicto confirmou:
–– Sujeito realmente perigoso. Eu diria que é um mau elemento. Na minha cidade existem poucos. Aqui, não é de se estranhar que existam muitos. Os casebres dão nojo a um porco e os palacetes nem mesmo um pavão…
–– Uma Toxicomania ––garantiu-lhe o psiquiatra. ––Esta doença mental tem sido um pesadelo para nós.
–– Mas por que só esta pessoa foi internada? Lá fora fuma-se desbragadamente, entope-se de bebidas alcoólicas, o ar está cheio de gases tóxicos, os alimentos carregados de venenos, os rios são um bueiro fedorento e sem vida…
Quando o psiquiatra apresentou-lhe o Alcoólatra, o Velho Sábio não se conteve:
–– O senhor jé me trouxe um caduco, um retardado, um louco, um mau elemento, um viciado e agora me traz um bêbado. São figuras típicas em qualquer lugar, mas nada têm umas com as outras. Ainda não sei o que é um doente mental. É todo pobre diabo que perturba a vida de sua grande cidade?
Muito impressionado, o psiquiatra propôs:
–– Vamos retirar-nos por alguns instantes, Velho Sábio. Precisamos meditar sobre suas graves palavras. Aguarde-nos aqui.
Os sábios congressistas reuniram-se e, após pesado silêncio, cada um deu a sua opinião.
O psiquiatra afirmou:
–– O cérebro do Velho Sábio dá mostras de grave lesão.
O psicólogo advertiu:
–– Sua mente é um retrato vivo da morbidez.
O psicanalista exclamou:
–– Seu inconsciente está à flor da pele.
O parapsicólogo garantiu:
–– Influências paranormais ali se concentram.
O curandeiro percebeu:
–– A natureza fustigou esse velho organismo.
O sacerdote salientou:
–– Deus aplicou-lhe as mais árduas provações.
O macumbeiro finalizou:
–– E Exu não lhe dá um só minuto de trégua.
O psiquiatra ficou encarregado de comunicar-lhe o resultado:
–– Escuta aqui, ó, vovô: tenho boa notícia. Para o seu próprio bem, você vai ficar internado neste hospital, fazendo um tratamento.
E foi assim que, num tempo que não se sabe quando, e num lugar que não se sabe onde, mas que se presume não muito distante, encerrou-se melancolicamente um inglório Congresso, que nada deixou para a posteridade. Aliás, minto. Deixou nota lacônica.
“Nós, os congressistas abaixo assinados, não conseguimos chegar a um acordo quanto ao desafio que representa o aumento das doenças e dos doentes mentais. Nossa única esperança é a de que a Misericórdia de Deus ou as Luzes da Ciência venham abrir os corações e as mentes dos homens, tornando-os capazes de resolver este grave problema, que tem transformado a vida em sociedade numa trajetória tão sofrida e espinhosa”.
(Publicado em Reforma Psiquiátrica e Movimento Lacaniano, Itatiaia, 1999)