O TRATAMENTO PSICANALÍTICO DE UMA CRIANÇA
(com uma única intervenção)[1]
Em fevereiro de 2001, quando assumi a supervisão clínica da Coordenadoria de Psicologia de um hospital universitário, uma questão crucial foi-me apresentada. A participação da psicologia era requerida como interconsulta. A alta do paciente, entretanto, dependia essencialmente da evolução do quadro médico. Num hospital sob constante pressão das demandas de tratamento, apenas em casos excepcionais a psicologia influía na duração das internações. No dia a dia, o resultado era este: diante de um novo caso, não se sabia quanto tempo duraria o tratamento. Às vezes, após a internação, era possível continuar em regime ambulatorial. Outras vezes, porém, com pacientes do interior, perdia-se repentinamente o contato. Eram freqüentes as situações em que se iniciava uma entrevista sem saber se haveria outra, ou quantas outras haveria. Qual a solução?
A solução que propus foi trabalhar com o tempo lógico. Cada entrevista ou sessão tem um início, um meio e um fim; o início correspondendo ao instante do olhar, o meio ao tempo para compreender e o fim ao momento de concluir. A idéia, por conseguinte, era trabalhar cada entrevista ou sessão como se fosse a única. Com a estratégia assim formulada, dissipava-se o problema anteriormente apresentado.
É claro que, em alguns casos, uma sessão se sucedia a outra, e a mais outra, formando uma série, com a perspectiva de continuidade após a internação, no ambulatório. Tínhamos então um tratamento —não se tratava, em nenhum dos casos, evidentemente, de psicanálise pura, mas de psicanálise aplicada. Tal continuidade não alterava a estratégia, pois, também os tratamentos se regem pelo tempo lógico, também eles têm um início, um meio e um fim.
Darei um exemplo clínico. Um caso singelo, por pelo menos dois motivos. É o tratamento psicanalítico de uma criança que consta de uma única intervenção. O segundo aspecto relevante é a clareza com que se pode distinguir os três momentos do tempo lógico.
O caso de S.
(De autoria de Grace Pereira dos Santos)[2]
S., uma criança do sexo feminino, de um ano e quatro meses, foi internada na pediatria para tratamento cirúrgico de câncer da suprarrenal. Seu tamanho e aparência —conseqüência do tumor— faziam-nos pensar numa garota de três anos.
Seis dias após a internação, fui chamada para atender a sua mãe, que estava em crise (dissociação histérica). No dia da crise, S. chorou o tempo todo, pois ainda mamava no peito e ficou impossibilitada de fazê-lo, naquele momento. Uma fruta oferecida por uma acompanhante de outro leito foi-lhe arrancada da mão por um tapa da mãe.
No dia seguinte, para espanto da equipe, mesmo com o afastamento da mãe, a criança dormiu a manhã inteira.
Três dias após a crise e separação da mãe, S. foi operada com sucesso, tendo o pai chegado para ficar com ela. Mostrava-se, porém, arredia, irritada e chorosa, sempre que alguém da equipe se aproximava. Com dificuldade, aceitava alguma alimentação. Recusava ostensivamente a mamadeira, chorando e pedindo “mamá”.
No quarto dia subseqüente à cirurgia, uma nova substituição de acompanhante fez-se necessária: o pai tinha uma prótese na perna que dificultava sua adaptação às acomodações da enfermaria. S. passou a ficar sob os cuidados do padrinho.
A criança continuou cada vez mais irritada e chorosa. Não aceitava a aproximação de ninguém e, embora com brinquedos no berço, não brincava. Quando não estava dormindo, estava curvada sobre a cirurgia. Não permitia que lhe tocassem, que arrumassem seu berço; continuava recusando as mamadeiras e pedindo “mamá”.
Diante disso, fiz uma intervenção. Preparei uma caixa de brinquedos e dirigi-me ao seu leito, temendo que S. não me aceitasse e que jogasse tudo longe. Ela já me conhecia: eu acompanhava as visitas da mãe, orientava o pai, o padrinho…
Apresentei-me, falei do meu trabalho e mostrei-lhe os brinquedos. Ela os retirou da caixa, olhou-os, manuseou-os sem se levantar. Comecei a dizer-lhe o que se passara com ela. —Você ficou doente e veio para cá com a mamãe pra se tratar. Cortou a barriguinha, tomou remédio… Mas a mamãe também ficou doente, você viu, aí o médico a levou lá em cima para cuidar dela. A mamãe gosta muito de S., mas ela ficou doente e não pôde continuar aqui com você, nem dar de mamar para você. Aí veio o papai para ficar com você, mas o papai tem aquele dodói na perna, estava doendo e ele também não pôde ficar aqui com você. Ele também gosta muito de S., por isso trouxe o seu padrinho. Todos gostam muito de você, mas ficaram dodói e não puderam ficar aqui. Quando você puder sair do hospital o papai e a mamãe virão buscar você.
- não diz nada, recoloca os brinquedos na caixa e eu encerro.
A partir desse dia o padrinho descobre que ela gosta de “danoninho” e investe nesse alimento. S. não chorou mais; pelo contrário, deixava que a examinassem, passeava pelo solário, brincava, sorria. Ainda chorava quando lhe ofereciam mamadeira e pedia “mamá”. Contudo, acabava aceitando outros alimentos.
Foram realizados mais três atendimentos nos quais S. retirava e manuseava brinquedos ou ouvia estórias. Com sua alta o tratamento foi encerrado.
Comentário
O instante do olhar. A analista, que havia sido chamada para atender a mãe, e em seguida para orientar o pai e o padrinho, observa o que se passa com a criança. Esta, por sua vez, também observa aquela que sabe cuidar deles, estabelecendo-se, provavelmente, uma suposição de saber.
O tempo para compreender. Do lado da analista, trata-se de elucidar o que foi apreendido no instante de olhar. No caso clínico apresentado, a fantasia de abandono. A partir do momento em que isso ficou claro, a questão passou a ser como fazê-lo claro também para a criança. A resposta veio com a intervenção, em que a fantasia de abandono foi interpretada e a separação da mãe metaforizada. A intervenção correspondeu ao tempo para compreender da criança.
O momento de concluir. Foi o corte da sessão. A criança antecipou-se, recolocando os brinquedos na caixa. A analista percebeu e encerrou no momento exato. A sua retirada do cenário reeditou o afastamento da mãe, não mais vivido como abandono. O corte funcionou como ponto de basta, com ressignificação retroativa das cenas do instante do olhar. Os três últimos atendimentos tiveram o único mérito de constatar os efeitos da intervenção.
Celso Rennó Lima, presente no dia da discussão, não deixou passar o da-no-ninho, que, a esta altura, só confirmava certo trânsito pelo simbólico.
Em L’homologue de Malaga, Miller comenta que a estrutura do tempo lógico pode ser discernida tanto no percurso de uma sessão como no percurso de toda uma análise.[3] E mais recentemente, Miller propôs, a propósito dos efeitos terapêuticos rápidos, a teoria do ciclo, como um recurso importante para a psicanálise aplicada.[4] Ora, pode-se dizer que o tempo lógico também estrutura os ciclos. Seria algo comum à psicanálise pura e à aplicada. Colocada a questão nestes termos, resolve-se, também, outro problema. Quando se pergunta se uma psicanálise evolui por progressão ou por ruptura, se consideramos que ela está estruturada pelo tempo lógico, obtém-se a resposta que ultrapassa o dilema: a psicanálise evolui tanto por progressão como por ruptura.
[1] Publicado na Opção Lacaniana nº 49. São Paulo: Eólia, agosto 2007, pp. 85-87 e no livro Ensaios de Psicanálise e Saúde Mental, Scriptum, 2010.
[2] Caso clínico apresentado por Grace Pereira dos Santos no dia 9 de agosto de 2002, durante Supervisão Clínica instituída pela Coordenadoria de Psicologia do Hospital das Clínicas da UFMG. Aqui incluído com a sua gentil autorização.
[3] Miller, J.-A. L’homologue de Malaga. In: Le temps fait symptôme. Paris: ECF, La Cause freudienne, nº 26, 7-16, février 1994, p. 9.
[4] Miller, J.-A. & Cols. Efectos terapêuticos rápidos. Buenos Aires: Paidós, 2006, pp. 99 e sgtes.