Os efeitos da ciência sobre o corpo[1]
(O corpo-máquina da medicina,
o corpo neuronal da psiquiatria biológica,
o corpo remodelado da medicina plástica)
A psicanálise é a última flor da medicina.
Jacques Lacan[2]
Os efeitos da ciência sobre o corpo: eis um tema que pode ser abordado por diferentes caminhos. A medicina, prática social que cuida do corpo enfermo, é um dos principais.
Hipócrates, que viveu de 460 a 370 a.C., é considerado o pai da medicina. Trata-se, por conseguinte, de uma tradição de mais de dois mil anos. Seu ingresso na era científica, porém, foi relativamente tardio, devido a obstáculos ao estudo científico do corpo. Um exemplo foi a proibição, por muito tempo, do exame e investigação dos cadáveres. A transição começou na segunda metade do século XVIII e foi concluída na primeira metade do século XX: quase dois séculos de duração. E tudo pode ser resumido da seguinte forma: o estabelecimento do normal e do patológico em bases clínicas, anatômicas e fisiológicas.
Uma grande transformação, com duas mudanças fundamentais: no papel do médico e na concepção de corpo.
Em Psicanálise e Medicina, Lacan comenta que, quando se considera a história da medicina, constata-se que o grande médico, o médico padrão, era um homem de prestígio e autoridade. O que acontece entre médico e paciente, ilustrado agora pelo aforismo de Balint ––o médico, ao receitar, receita a si próprio–– sempre aconteceu: assim, por exemplo, o imperador Marco Aurélio convocava Galeno para que esse lhe vertesse com suas próprias mãos a teriaga (xarope que se presumia eficaz contra picadas de animais peçonhentos).[3] Está implícito o que a psicanálise descobriu e nomeou com o termo transferência, chave do poder do médico na era pré-científica. Hoje se sabe que os procedimentos desse longo período mais agravavam do que sanavam as moléstias.
O corpo-máquina
Para entender a mudança no papel do médico é preciso conhecer, primeiro, o grande salto na concepção de corpo: uma perspectiva que caminha para situá-lo de forma a ser inteiramente fotografado, radiografado, calibrado, diagramado e condicionado.[4] O corpo passou a ser considerado um sistema homeostático, em sua pura presença animal, o que já foi chamado com justeza de corpo-máquina. A medicina sabe cada vez mais sobre partes cada vez menores desse corpo-máquina, cujas leis e funcionamento vêm sendo desvendados de forma minuciosa e precisa. No final do século XX, o progresso exponencial dos recursos tecnológicos permitiu uma dissecção virtual in vivo, que, além do mais, mudou o recorte do corpo. Houve uma fragmentação, um estilhaçamento produzido pelo discurso científico. O avanço do conhecimento foi tamanho, que só cabe a cada um o estudo e o domínio de um pequeno fragmento desse corpo.
Tudo está de acordo com o princípio segundo o qual há saber no corpo, assim como há saber no real da ciência. Dizendo em outros termos: seu funcionamento se faz segundo leis rigorosamente definidas, na sequência lógica de causa e efeito, e de maneira tal que é possível descobrir e elucidar as suas ocorrências. O corpo, portanto, está concebido como máquina complexa destinada a ser inteiramente desvendada e explicada. Nenhum mistério ficaria de pé, pois, como afirmou Einstein no célebre debate com Bohr, nos anos 1930, “Deus não joga dados”, quer dizer, o acaso não rege o universo.
A medicina contemporânea adotou, enquanto prática social, a concepção de corpo-máquina, o que resultou em mudanças substanciais no papel do médico.
Muito distante daquele personagem da era pré-científica, o médico de hoje caminha para tornar-se, se já não se tornou, um técnico. Cada vez mais, é um especialista, num sistema que se equilibra criando o lugar do generalista. Generalista, que é diferente de clínico geral. A diferença está na eliminação do clínico. Com efeito, estaríamos num tempo em que não haveria mais lugar para a clínica? Em que se procuraria, mais e mais, uma relação direta entre os sintomas e seu substrato biológico, ou entre a disfunção e o defeito na máquina? Tal modelo, por si só, define a exclusão da subjetividade, tanto do médico como do paciente.
Para concluir esta parte: de acordo com Lacan, não foi por acaso que o nascimento da psicanálise coincidiu com o ingresso da medicina na era científica.[5] O campo freudiano é, precisamente, o campo do desejo e do gozo. A psicanálise trabalha, desse modo, com aquilo que a medicina deixou de lado na sua evolução, ao criar uma nova concepção de corpo.
O corpo neuronal
O nascimento da clínica médica foi imediatamente seguido pelo surgimento da clínica psiquiátrica. Pinel, o principal inventor do método clínico,[6] foi também o fundador da psiquiatria. No início do século XX, porém, enquanto a medicina concluía seu ingresso na era científica em sólidas bases biológicas (clínicas, anatômicas e fisiológicas), o mesmo não ocorria com a psiquiatria. Sua inserção no método anatomoclínico era discreta. E, dada a natureza de seu objeto, ela constituiu-se como disciplina híbrida,[7] reunindo subsídios da medicina, de um lado, e, de outro, conforme a escola, contribuições da fenomenologia husserliana, do existencialismo heideggeriano ou da psicanálise freudiana, contribuições estas destinadas ao estudo da subjetividade dos pacientes.
Tal quadro prevaleceu na primeira metade do século passado. Na segunda metade, uma reviravolta. Com o avanço das neurociências, surge uma nova tendência, baseada na concepção de que o psiquismo duplica o cérebro, ou seja, o psíquico como duplo do cerebral; sendo assim, o que se localiza como atividade cerebral, vale, ipso facto, para o psiquismo.[8] Seria uma versão extremada e particular do corpo-máquina: o cérebro como um computador supercomplexo, e a vivência humana como um semblante de sua atividade. Nesse contexto, toda doença mental seria uma perturbação no funcionamento da supermáquina, e todo tratamento uma correção do defeito. A essa versão especial do corpo-máquina pode-se denominar corpo neuronal.
No extremo, há uma redução de toda vivência humana, ou mesmo de toda experiência existencial, a um fato cerebral. Nada escapa a tal sina determinista, nem mesmo expressões complexas como felicidade, mau humor, genialidade, vocação profissional, orientação sexual, dentre outras.
A prática social que se faz com base em tal concepção é a psiquiatria biológica. Fica implícita uma tentativa de aproximação da psiquiatria com a medicina contemporânea. Da mesma forma que o médico, o psiquiatra atual é, cada vez mais, um técnico, com a função de dar diagnósticos bastante padronizados e propor tratamentos cada vez mais cabíveis em algoritmos. Mas há diferenças cruciais entre a psiquiatria e a medicina, que são rotineiramente escamoteadas.
A mais importante: enquanto o conceito de normal e patológico em medicina está fundado em bases biológicas consistentes, o conceito de normal e patológico em psiquiatria não tem caracterização biológica. Basta perfilar os transtornos das classificações psiquiátricas —DSM-IV, CID-10, DSM-V— para constatar tal realidade. A referência é a norma social; o sintoma é definido como o que não permite que cada um consiga fazer o que está prescrito pelo discurso de seu tempo. Enquanto na medicina a caracterização biológica é um a priori, na psiquiatria é um a posteriori que pode ou não existir, ou que existe precariamente, desconsiderando-se inclusive a diferença entre causa, efeito e correlação. A psiquiatria biológica, fincada num terreno movediço, sem ter propriamente bases científicas adota, não obstante, um discurso científico e posições cientificistas.
Há, assim, a presunção de um neurorreal (termo de Miller)[9] onde estaria a causa de todos os sintomas, de acordo com leis bem determinadas que caberia à ciência desvendá-las, o que se insere na perspectiva segundo a qual há saber no real. O que é diferente do real da psicanálise, que não obedece ao princípio da causalidade, que é um real sem lei e sem saber.
O corpo remodelado
Outro ponto do artigo de Lacan sobre Psicanálise e Medicina será retomado. A noção de falha pode ser utilizada para definir o efeito do progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo. Em outras palavras: quanto mais a medicina científica avança, mais ela ganha, em certa perspectiva, e mais ela perde, em outra. Dizendo em poucas palavras em que consiste esta falha: quando se toma por objeto o corpo-máquina, fica de fora a dimensão do desejo e do gozo.[10] É o que Lacan chamou de falha epistemossomática. A falha epistemossomática, portanto, é a que se verifica entre o corpo considerado como um sistema homeostático, em sua pura presença animal —corpo biológico estabelecido pela ciência médica— e o organismo desejante e gozoso.
Conquanto tal observação tenha ainda procedência nos dias de hoje, é preciso considerar um aspecto correlato, que se avolumou na segunda metade do século XX e que se faz cada vez mais presente no cenário social. Trata-se de uma tendência da medicina a não considerar satisfatório o que é dado como evolução natural. Quando se toma como referência certo naturalismo das concepções religiosas, por exemplo, a medicina contemporânea é, comparativamente, anti-natural. Tudo se passa como se o corpo naturalmente modelado tivesse que ser remodelado, mesmo no que se refere a aspectos cruciais, como o gênero sexual.
O discurso médico, com sua vocação totalitária, tem produzido efeitos cada vez mais pronunciados sobre o corpo visando à sua remodelação, inclusive enquanto objeto de desejo e de gozo. Tal orientação, que se apresenta como nova senhora dos costumes, poderia ser chamada de medicina plástica.
A intervenção médica ficava, outrora, restrita aos processos das doenças e de sua prevenção. De forma crescente, porém, ampliou o seu domínio. Foram incluídas experiências como a gravidez, o parto, a amamentação. Fases da vida como a infância, a adolescência, o climatério, a senilidade. Atividades como a alimentação, o sono, o trabalho, o sexo. Opções existenciais relacionadas à anatomia sexual. E o ideal estético ligado à imagem corporal.
Entraram em cena, destarte, numerosas intervenções: cirurgias (as plásticas, os implantes, as próteses), medicamentos (inibidores do apetite, liberadores sexuais, hormônios —anticoncepcionais, anabolizantes, virilizantes, feminilizantes), técnicas de embelezamento da medicina cosmética, entre outras. A influência da medicina sobre os costumes tem contribuído para a criação e/ou para o encantamento de uma série de novas expressões: bebê de proveta, barriga de aluguel, reposição hormonal, congelamento de embrião, gravidez pós-menopausa, clonagem, top-modelismo, fisiculturismo, rejuvenescimento, transexualismo, etc.
Com isso, o discurso médico tem apresentado uma variada oferta de produtos endereçados àqueles que buscam se esquivar da confrontação com a falta, mediante a reparação de suas incidências como defeito no imaginário do corpo. Ao proceder assim, contribui para a idéia de que o ideal é realizável, de que a complementação é possível, de que a relação sexual existe.
O ideal que se persegue é um saber completo sobre o real, que Lacan chama de paranóia bem sucedida e que corresponderia ao encerramento da ciência.
NOTAS
[1] Publicado na OPÇÃO LACANIANA ONLINE: http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero13/texto8.html
e no livro O bem-estar na civilização, CRV, 2016.
[2] Lacan, J. (1975) Conversa com estudantes na Universidade de Yale, EUA (inédito).
²Lacan J. (1985) Psicoanálisis y Medicina. In: Intervenciones y Textos. Buenos Aires:Manantial, p.87.
[4] Lacan, J. (1985) Op. cit., p. 92.
[5] Lacan, J. (1985) Op. cit., p. 94.
[6] Bercherie, P. (1989 Os Fundamentos da Clínica. História e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 31.
[7] Alonso-Fernández, F. (1968) Fundamentos de la Psiquiatría Actual. Tomo I. Madrid: Editorial Paz Montalvo, p. 12.
[8] Miller, J.-A. (2008) Du neu-rone au noeud. In: Tout Le monde est fou. Cours du 6 février (inédito).
[9] Miller, J.-A. (2008) Op. cit.