Introdução
Em 1938, num de seus últimos escritos, Freud assim se manifesta: “Descobrimos que temos de renunciar à idéia de experimentar nosso plano de cura com os psicóticos ––renunciar a ele para sempre ou talvez apenas por enquanto, até que tenhamos encontrado um outro plano que se lhes adapte melhor”.[1] Que “outro plano” seria este?
Antes de tentar responder, é importante situar as razões que determinaram a oposição à psicanálise de psicóticos. Como se sabe, a transferência, vista inicialmente como empecilho, caminhou para tornar-se o principal fundamento da experiência analítica. Freud, no seu texto sobre o narcisismo, opôs a “neurose narcísica” à “neurose de transferência”. Esta última seria caracterizada pela libido objetal, e incluiria a histeria e a neurose obsessiva. A primeira seria caracterizada pela retração da libido sobre o ego; as neuroses narcísicas seriam equivalentes às psicoses.[2] Dada a impossibilidade de transferência libidinal, os psicóticos seriam, então, inacessíveis ao método psicanalítico.
Incapaz do amor de transferência, portanto, pois não consegue chamar para si o enunciado declarativo “eu te amo”, o psicótico só pode sustentar o amor a partir do exterior: “ela me ama” (erotomania), “ela o ama” (delírio de ciúme) ou “ele me odeia” (delírio de perseguição, com transformação do amor em ódio). Restaria para o sujeito, apenas, o “eu me amo” (megalomania).
Com Lacan, as mudanças começam a surgir. Primeiramente, não mais se fala de impossibilidade, mas de tratamento possível da psicose. E mais tarde, formulou-se o célebre ditame ético: “Um analista não deve recuar diante da psicose”.[3] Mudanças que não contrariam Freud: de fato, o tratamento psicanalítico do psicótico só se tornou possível a partir de um outro plano, ou de outras coordenadas para a sua direção.
Considere-se, de início, a proposição lacaniana segundo a qual a transferência se situa na relação com o saber. Mais precisamente: a mola mestra da transferência é o sujeito suposto saber. Não me deterei neste ponto; assinalarei, apenas, que não se trata de um saber qualquer, mas de um saber sobre o inconsciente. Isso se passa na neurose. Cabe, então, a pergunta: e na psicose, como fica tal relação? Miller, a este respeito, é bem claro: “O paranóico só conhece o saber. Sua relação com o saber constitui seu sintoma. O que o persegue a não ser um saber que passeia pelo mundo, um saber que se faz mundo?”[4] Com efeito, quando o Outro se apresenta para o psicótico como o Outro do saber, ele é encontrado de forma persecutória ou erotomaníaca.
Em outras palavras, a transferência psicótica também se situa na relação com o saber, mas está marcada não por uma suposição, mas por uma certeza. Além disso, o Outro do saber coincide com o Outro do gozo. Lacan não discorda de Freud, mas formula a questão em outros termos. Na neurose, verifica-se que o vetor da transferência vai do sujeito analisante ao Outro analista, enquanto que o vetor da interpretação vai do Outro ao sujeito.
NEUROSE: Sujeito transferência> <interpretação Outro
Ou seja, a transferência, positiva ou negativa (amor ou ódio), está do lado do sujeito, enquanto que a interpretação está do lado do analista. E o que visa à interpretação psicanalítica do neurótico? Respondendo de modo sucinto, pode-se dizer: (1) Num primeiro tempo, correlativo da entrada na análise, ela visa ao surgimento da significação fálica, sexual, de natureza edípica, latente no discurso do analisante em função da barra do recalque. (2) Num segundo tempo, correlativo do final de análise, ela visa ao esgotamento, ao apagamento da significação, com a emergência da referência assexuada do objeto (a).[5]
Na psicose, porém, tudo se passa de modo radicalmente diverso. Sabe-se, por exemplo, que a interpretação psicanalítica pode desencadear uma psicose, por fazer apelo ao ponto de forclusão. Além disso, numa psicose manifesta, é preciso considerar certas diferenças essenciais. Nos casos mais graves, o vetor da transferência retorna autisticamente sobre o sujeito. Quando o Outro é subjetivado, como na paranóia, a certeza psicótica supõe o vetor da transferência procedendo do Outro até o sujeito (é o caso tanto da erotomania como da perseguição). Há, aqui, a situação do sujeito como objeto da vontade de gozo do Outro. Quanto à interpretação, tomando-se o exemplo de Schreber, vê-se que quem interpreta é ele, ao passo que Deus é quem fala, quem oferece à interpretação as mensagens das vozes ou os signos do real. O vetor da interpretação é que vai do sujeito ao Outro.[6] No tratamento psicanalítico do psicótico, portanto, não há lugar para interpretação do lado do analista; a interpretação, quando existe, está do lado do psicótico.
PSICOSE: Sujeito <transferência interpretação> Outro
Estratégias para a transferência psicótica
Há outro aspecto muito importante a ser considerado, e que tem a ver com a direção do tratamento. Ao contrário da transferência neurótica, a transferência psicótica é, sempre, um obstáculo intransponível para o trabalho analítico. Deve ser evitada a todo custo. Com que meios se conta para tal empresa? No âmbito do presente trabalho, três possibilidades serão consideradas: a inversão da suposição de saber, a dispersão da suposição de saber e a manobra da transferência.
A inversão da suposição de saber é um princípio que ganha força a partir da segunda clínica de Lacan. Enquanto que a primeira clínica tenta examinar a psicose a partir da neurose (paradigma: Schreber), a segunda clínica caminha da psicose para a neurose (paradigma: Joyce). Reviravolta que tem implicações teóricas e clínicas, passando-se da aplicação da psicanálise à psicose à aplicação da psicose à psicanálise. Em poucas palavras: é a psicose que nos ensina. Ensina-nos sobre a estrutura e sobre as soluções que ela própria encontra para uma falta central no simbólico.
A inversão da suposição de saber é uma conseqüência dessa evolução, que poderia ser formulada nos seguintes termos: o psicótico sabe o seu caminho. O que nos coloca em posição de aprendizagem em relação à clínica, em posição de sujeito suposto não saber. Propõe-se, com isso, levar ao limite o que se conhece desde os tempos de Freud: que o psicótico sabe encontrar as suas soluções, que o seu caminho é autoconstruído. Posição que está de acordo, também, com o que, há muito, se verifica na prática clínica.
Ora, se o saber está do lado do psicótico, não há lugar, no tratamento, do lado do analista, para nenhuma tentativa de envio a outro sentido, nenhum deciframento ou interpretação. A interpretação está do lado do psicótico, e a posição de aprendizado é que pode, no tratamento, permitir ao analista escutar as indicações que o psicótico traz para o seu caso.
A dispersão da suposição de saber é uma constatação do trabalho feito por muitos (pratique à plusieurs) numa instituição. O tratamento da psicose não exige automaticamente uma estrutura coletiva de resposta, mas, sem dúvida, para muitos casos, isso se torna preferível. A proposta do trabalho feito por muitos inclui uma posição de aprendizagem em relação à clínica e uma desierarquização do saber prévio, o que acarreta uma divisão de responsabilidades. No contexto, a dispersão do saber suposto que está implicada nesse tipo de trabalho reforça a inversão da suposição de saber de quem está numa posição de aprendizagem.[7]
Lacan referiu-se à manobra da transferência uma única vez, na Questão Preliminar; mesmo assim, sem dar indicações sobre o assunto. É com dificuldades que se tenta formalizar algo a respeito. A manobra da transferência seria um modo do analista lidar com a transferência psicótica. Consiste em sair do lugar persecutório ou erotomaníaco em que o psicótico o coloca, buscando um lugar vazio de gozo. Trarei um fragmento clínico privilegiado: uma manobra da transferência realizada pelo próprio Lacan!
Trata-se de entrevista conduzida por Jacques Lacan, com um paciente psiquiátrico hospitalizado, um paranóico, diante de grupo de psiquiatras e psicanalistas. É importante assinalar que o paciente —que teve seu nome alterado por Jacques-Alain Miller para Gérard Primeau— tinha Lacan em alta conta, motivo pelo qual concordou em conversar com ele. Ou seja, a transferência estava lá. Vamos ao fragmento que nos interessa e que ocorreu pouco após o início da apresentação.
“Dr. Lacan – Sim. Então vamos conversar mais especificamente, se você quiser, sobre as sentenças emergentes (falas impostas). Desde quando elas emergiram? Esta não é uma questão idiota (…)
G. Primeau – Não, não. Desde que (…) fui diagnosticado como tendo crises paranoicas em março de 1974.
Dr. Lacan – Quem disse isto?
G. Primeau – Um médico àquela época. Essas sentenças emergentes…”
Nesse momento, Lacan observa que o paciente está olhando de modo desconfiado para uma pessoa da platéia. Não perde tempo.
“Dr. Lacan – Por que você se volta para este homem aquí?
G. Primeau – Senti que ele estava zombando de mim.
Dr. Lacan – Você sentiu uma presença zombadora? Ele não está em seu campo de visão.
G. Primeau – Estava ouvindo um som e senti (…)”
Lacan confirma, assim, a atribuição persecutória. O que ele diz, em seguida, é o que pode ser caracterizado como manobra da transferência.
“Dr. Lacan – Ele certamente não está brincando com você. Conheço-o bem e ele seguramente não está brincando com você. Ao contrário está muito interessado. Foi por esta razão que fez barulho.
G. Primeau – A impressão de sua compreensão intelectual (…)
Dr. Lacan – Sim, penso assim, isto é mais como ele é. Eu lhe disse que o conheço. Além disto, conheço todas as pessoas que estão aqui. Elas não estariam aqui, se não tivesse total confiança nelas. Bem, continue”.[8]
E o paciente continuou até o fim uma longa entrevista. A manobra da transferência muito provavelmente evitou a eclosão de uma crise persecutória.
A neotransferência
Isso quer dizer que, no tratamento psicanalítico do psicótico, a transferência não deve ter lugar? Não é exatamente assim. A transferência que não deve ter lugar é aquela que se situa em relação ao saber. No entanto, o tratamento psicanalítico do psicótico, sim, ele se faz sob transferência, que se situa em outros termos. É o que, a partir da Convenção de Antibes (1998), vem sendo chamado de neotransferência.
Se não é o lugar do saber (S2), que lugar deve o analista ocupar? Questão que exige uma digressão.
Conforme foi dito, o saber inconsciente está do lado do psicótico. E mais: o psicótico tende a ocupar o lugar de objeto, dividindo o analista (ou a equipe de tratamento). O que pode ser escrito pelo seguinte matema.
a > $
S2
Ora, fica claro que o psicótico rivaliza com o analista, ou tende a ocupar o mesmo lugar que seria do analista. Esta é uma das dificuldades do tratamento. Não se acede à posição de analista senão a partir de uma destituição do sujeito, algo que deve ser renovado a cada vez. Na Convenção de Antibes alguns casos clínicos evidenciam a passagem de sujeito a objeto. Num dos exemplos, um caso de mutismo, ela se dá quando, a certa altura, o psicótico comenta ironicamente sobre o analista: “El doctor está cachuso” (O doutor está um caco). Noutro exemplo, a passagem se dá quando a menina psicótica insulta o analista: “Pareces uma lebre! Não gosto de vir aqui para te ver! Com teu corte de cabelo pareces uma lebre!” Este nome de animal produzia um equívoco na lalíngua com o nome do terapeuta: “Lelièvre”. Desse modo, o caco ou a lebre indicam o analista na posição de objeto (a).[9]
A neotransferência comporta uma outra possibilidade: o analista, ou mesmo a instituição, no lugar do ideal, ou como S1. S1 este que põe o psicótico a trabalho, visando a uma produção, que pode ter valor de suplência.
A neotransferência é um tear onde se procura tecer o laço social, a matriz de um discurso. Além disso, a clínica tem demonstrado que, freqüentemente, o estabelecimento de um vínculo (neo)transferencial possui, por si só, certa função estabilizadora. É uma constatação.
REFERÊNCIAS
Publicado no livro Ensaios de Psicanálise e Saúde Mental, Scriptum, 2010.
[1] Freud, S. (1975) Esboço de Psicanálise (1938). ESB, Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, p. 200.
[2] Freud, S. (1974) Introdução ao narcisismo (1914). In: ESB, Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, pp. 89-119.
[3] LACAN, J. Ouverture de la Section Clinique. In: Ornicar? Paris: 9: 7-14, avril 1977, p. 12.
[4] Miller, J.-A. (1998) Lições sobre apresentação de doentes (p. 202). In: Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica. A conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.
[5] MILLER, J.-A. Acerca de las interpretaciones. In: Escansión. Buenos aires: Paidos, junho de 1984, p. 169-171.
[6] SOLER, C. (1992) Estudios sobre las psicosis. Buenos Aires: Manantial, pp. 49-50.
[7] Zenoni, A. Qual Instituição para o Sujeito Psicótico? In: Abrecampos, Ano 1, Nº 0. Belo Horizonte: Instituto Raul Soares, 2000, pp. 19-20.
[8] Lacan, J. Uma psicose lacaniana: entrevista conduzida por Jacques Lacan (p. 6). In: Opção Lacaniana, nº 26/27. São Paulo: Edições Eólia, abril de 2000.
[9] Miller, J.-A. y otros. (2003) Neotransferencia: Lalengua de la transferencia en las psicosis. In: La psicosis ordinária. Buenos Aires: Paidós, pp. 131-158.